Antes que o diabo saiba que morreste, põe-te de quatro
E foi isso que Marisa Tomei fez. Posteriormente elogiada pela sua coragem, do meu ponto de vista – diferente apesar da partilha do mesmo ângulo – o maior grau de exposição é o de Phillip Seymor Hoffman, um tipo feio e bachochas, de quem se espera que saiba foder convincentemente um mulherão. E se a cena é especialmente bonita pelo abandono de Tomei a uma certa (dis)posição, é a sensualidade incólume à inestética do corpo de Hoffman que a torna verdadeiramente admirável.
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Fui à minha ginecologista no dia mundial do orgasmo esperando que ela me ajudasse a festejá-lo. Mas o máximo que consegui foi papar o Nicolau.
The pains of (not) being pure at heart
Com o tempo, as dores de crescimento transferem-se dos joelhos para o miocárdio.
Ficha clínica
Subtraiu-se às formas do mundo, com o rigor de uma bailarina que se anula. Chegou a conseguir ser espaço aniquilando o corpo. Aos 40 kg, um sono por gastar escavou-lhe um ninho de aconchego debaixo dos olhos. Uma camada epidérmica de destroços envelheceu-a ainda jovem. Algures na pele, entre uma prega e outra, as cinzas de um desejo impossível. Disse-me: doutor, o meu corpo tem necessidades que eu não consigo acompanhar. Prescrevi-lhe um inibidor de lucidez.
Everything in its right place
Que seria eu sem os meus lugares anónimos, sem os meus lugares privados, sem os meus lugares de visibilidade reduzida? Eu sei lá, não me perguntes a mim.
Mínimo denominador comum literário-sentimental
Mal por mal, qual escolherias: nada de dois ou menos que zero?
Frita
O coordenador da equipa do McDonalds vestia uma pele alva, um chapéu adornado por caracóis e um evidente problema de ego. Era sua missão acalmar os ânimos das caixas registadoras quando lhes saltava a tampa e encorajar as fritadeiras com promessas de lavagens automáticas. Enquanto os empregados depositavam no tabuleiro as partes constituintes do meu pedido, ele circulava em seu torno, ora falando alto para toda a gente ouvir, ora cochichando e desestabilizando a equipa em risadinhas. Eu continuava à espera das batatas, correndo sérios riscos de hiperventilar. Fui então socorrida pelo superhomem, baixote e sério, com um pacote das desejadas na mão, atribuindo sentido à vida do meu tabuleiro, que pôde então ser transportado para fora do palco das festividades. Procurei uma mesa que ficasse separada daquela zona por uma parede e, em paz, meti uma batata à boca; mastiguei uma vez, mastiguei uma segunda, mastiguei uma terceira e à quarta olhei para cima, zona presencial do bobo da corte, surgido à dobra do muro sem aviso prévio. Ostentava um conjunto de expressões e gestos de profundo embaraço e pesar e, oh diabo, um pacote de batatas fritas. Peço imensa desculpa (mastigo a batata), mas o pacote que lhe deram era o errado (mastigo a batata), esse já ali estava há algum tempo (mastigo a batata) e quando esse tempo excede os sete minutos, já não servimos (mastigo a batata), é uma regra nossa, (mastigo a batata), aqui está o pacote certo (paro de mastigar a batata, olho paralisada, procuro a salvação, suplico pela salvação), mas não há problema nenhum (mastigo a batata), não estamos aqui para envenenar ninguém (engulo a batata).
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Aguirre, der Zorn Gottes (ou Aguirre, O Aventureiro) é um objecto estranho mas identificado, não estivesse na cara (do Klaus Kinski) ser de Herzog. Num momento sofrível para a tripulação de uma jangada em crise de ansiedade, um pobre coitado refém do doidivanas seu líder, enquanto se tenta proteger das flechas lançadas pelos índios desde a vegetação cerrada, exclama «Não me pagam para morrer!». É muito bem visto. É inclusive muito bem visto junto de pessoas mal vistas como Klaus Kinski, que ameaçado por Herzog com um revolver, se vê obrigado a terminar o filme que quis, a dada altura, abandonar. E nós? Nós também somos atravessados por flechas e não abandonamos o barco. Mais tarde ou mais cedo, naufragamos. Não nos pagam para morrer, mas morremos sem defesas, vítimas do mais implacável índio invisível na paisagem. Tantas petições e nenhuma contra o Cupido, um estupor que tantas vezes se assemelha, ele sim, ao «grande traidor», à «Ira de Deus».
Desintoxicação
Após três insónias consecutivas, à quarta noite dormi bem. Imaginas a minha felicidade ao despertar? Não imagines, não houve. Mas alívio, sim, senti-o, eu sei que o senti, eu estava lá. Tenho muitas saudades de estar lá.
Bosche é brom
Devoção ou subserviência? O acto é um e intacto, mas no reconhecimento e na escolha entre uma ou outra, o olhar é o ditador.
Fake empire
Prometeu-lhe um reino para breve. Breve mente. As promessas não se fazem de mãos fechadas.
Wise matters
Ó mãe, também queria ter uma pilinha. Assim, em vez de ter um blog «bonito», já podia ter um blog «bom».
«You were too ugly to rape, so I beat the shit out of you»
Genericamente, o metal foi um estilo musical que nasceu da necessidade de dizer alarvidades sem que estas fossem entendidas, protegendo assim os seus músicos de uma vida na prisão.
Mefisto-Mefez, volume x
As mãos de um Mefisto não conhecem quietude. Mesmo num olhar mudo, parecendo imóveis, é um sangue expectante que lhes corre dentro, latente. Sorria.
– Sabes o que é fascinante no origami? Os vincos que permanecem quando desfazes o modelo. As marcas não se apagam, antes se acumulam, ad infinitum, até que o papel se rasgue. Passado sobre passado, expõem-nos. Vês?, aqui dobrei-te para dentro, ali dobrei-te para fora, e aqui, sentes?, inverti o sentido da tua cabeça e depois tirei-te as asas.
Mefisto pontuou a lição com um sorriso afiado e, rodando sobre si próprio, partiu, levando consigo o manual de instruções.
– Sabes o que é fascinante no origami? Os vincos que permanecem quando desfazes o modelo. As marcas não se apagam, antes se acumulam, ad infinitum, até que o papel se rasgue. Passado sobre passado, expõem-nos. Vês?, aqui dobrei-te para dentro, ali dobrei-te para fora, e aqui, sentes?, inverti o sentido da tua cabeça e depois tirei-te as asas.
Mefisto pontuou a lição com um sorriso afiado e, rodando sobre si próprio, partiu, levando consigo o manual de instruções.
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À imagem e semelhança
Há quem defenda que na origem do desenho estilizado de um coração está o coração de uma vaca e não o de um ser humano.
Abstracção
Há ainda quem defenda que o desenho estilizado de um coração é uma abstracção da vulva de uma mulher. O que nos remete mais uma vez para o Manual de Civilidade para Meninas, quando Pierre Louÿs aconselha: «Não digais: "A minha cona"; Dizei: "O meu coração"».
♡
Na matemática, obtém-se uma forma aproximada de um coração através da seguinte fórmula: (x2+y2-1)3-x2y3=0. É a chamada curva implícita. Afinal de contas, uma designação poética.
Há quem defenda que na origem do desenho estilizado de um coração está o coração de uma vaca e não o de um ser humano.
Abstracção
Há ainda quem defenda que o desenho estilizado de um coração é uma abstracção da vulva de uma mulher. O que nos remete mais uma vez para o Manual de Civilidade para Meninas, quando Pierre Louÿs aconselha: «Não digais: "A minha cona"; Dizei: "O meu coração"».
♡
Na matemática, obtém-se uma forma aproximada de um coração através da seguinte fórmula: (x2+y2-1)3-x2y3=0. É a chamada curva implícita. Afinal de contas, uma designação poética.
Tendinha revisited
Ontem fui apalpada e acho que bati no gajo errado. Pelo menos ele mostrou-se muito ofendido. Era espanhol e disse-me para me controlar. Caramba, acabam todos a dizer-me o mesmo.
Pa Pa Power
Havia, afinal de contas, um motivo clínico para todo este cansaço. O corpo é o mais eficaz agente fiscal do mundo.
Just sayin'
Alguém aqui chegou procurando no Google por «bloggers engraçados». Segui o link e a Menina Limão é a única que aparece.
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Mal por mal, prefiro os maluquinhos virtuais -- reduzem a probabilidade de sermos instados a olhar para trás no regresso a casa.
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É muito mais simples do que parece: os insultos gratuitos, ignorantes e infantis classificam (apenas) quem os faz.
sem reservas
Não é possível contares a tua história sem expores a intimidade do outro. Mas ao fim de alguns anos a mastigar em silêncio, é muito provável que enlouqueças.
desperate kingdom of love
Interrompiam a habitual violência para honrar as declarações de amor. As armas deitadas por terra, os insultos e as acusações quebrados por beijos súbitos. Não era pose. Acreditavam que falar para as paredes era o mínimo que podiam fazer por elas, tagarelas. E depois retomavam o caminho, um lembrando que o outro não comprara leite, o outro notando ter esmurrado os cotovelos da última vez que saíra para buscar os mantimentos.
Cada um pedala a sua bicicleta
De cada vez que vou ao Google Reader, fico com vontade de vos dizer: seus grandes filhos da puta, parem de postar.
juntos pela Paz (de la Huerta) #2
A verdade é que me impressionou a vergonha pesando-lhe os olhos, forçando-lhe a fronte a uma inclinação moderada, todo ele culpa na senda do embate.
juntos pela Paz (de la Huerta)
Estou cheia de sorte. Já lá iam uns anitos desde a última vez que um velho se sentara junto a mim no comboio para começar a tocar-se.
O mano tem 14 anos
– Pergunta-me pela nacionalidade de qualquer banda, que eu sei.
– Blonde Redhead.
– Não vale bandas de que nunca ouvi falar!
– Blonde Redhead.
– Não vale bandas de que nunca ouvi falar!
Surgery
Regra geral, as minhas melhores fotografias são auto-retratos. Por uma razão muito simples: ainda não encontrei ninguém que expressasse melhor do que eu os meus sentimentos.
Nem tudo o que é estranho nos é estranho
This* is a song about places you shouldn't go. Depois, cantou-a numa língua estranha que não compreendi. Mas eu compreendi tudo.
*Lue Kartalta, Lau Nau
*Lue Kartalta, Lau Nau
Sério contributo para o debate em torno da legalização das Putas
Menina Limão está desolada porque a puta da empregada da Fnac destruiu-lhe um rolo fotográfico inteiro. Menina Limão pede desculpa por ter acabado de insultar a puta, que quase sucumbiu às suas mãos sedentas de sangue, sobrevivendo para continuar a estragar os rolos dos outros.
O método científico tem um défice sentimental
Roland Barthes resistiu ao cinismo ao longo de todo o seu Fragmentos de um Discurso Amoroso, mas sucumbiu no final. Mesmo no finzinho, o cinismozinho. Que é o mesmo que dizer: depois do longo entusiasmo, o desconsolo.
Mirror Rim
– Apareceu-te outro cabelo branco.
– Ai sim? O espelho disse-me o mesmo, mas eu não quis acreditar.
– Ai sim? O espelho disse-me o mesmo, mas eu não quis acreditar.
Wise words
Estou numa fase de Leonard Cohen, Lloyd Cole, The Smiths, Tindersticks. Procuro a sabedoria dos antigos.
epígrafe
Embora falhe por pouco, Cabras, limonada e política não é a epígrafe deste blogue. Toda a gente sabe que os grandes temas deste banquinha são mamas e suicídio.
Got me lookin' so crazy right now
O Antony gravou uma versão da música da Beyoncé, Crazy in Love, atribuindo-lhe o sentido contrário. Da loucura metafórica à loucura clínica, da celebração à melancolia, um (com)passo apenas. Por vezes, as interpretações abusivas recomendam-se.
Resistirei ao título evocativo da leveza
Comecei por dizer-lhe vou-te perseguir, no momento em que as School Of Seven Bells repetiam I am under no disguise. Na mesma noite, enquanto folheava as páginas da minha agenda, ouvi os Mother Mother cantar diary pages, diary pages. Mais tarde, disse-lhe dói-me a pancinha e, no segundo seguinte, ouvi os Little Big Adventure cantar my stomach hurts and my head hurts. Por último, enquanto lhe escrevia seja como for, dou-me por perdida, ouvi a Katie Stelmanis implorar don't wanna lose ya, don't wanna lose. Estou apenas vagamente assustada, mas - pelo sim, pelo não - esta noite dormirei debaixo da cama.
She’s lucky
She’s lucky that I didn’t slip her a smile. Não sendo os melhores, são estes os meus versos preferidos, porque gosto desta ideia de que a inimiga tem sorte, ainda que o não saiba.
Eterno retorno
A meio do caminho voltei para trás, depois fiz o caminho completo, depois voltei novamente para trás e depois voltei a fazer o caminho completo, sabendo que o mais provável era ter de voltar uma vez mais para trás, sem conseguir cumprir o meu objectivo. Por muito filosófico que possa parecer, esta é apenas uma breve descrição de uma tentativa de ida à dentista.
I can't stop getting wasted
A nova grande cena da música portuguesa diz mais sobre o estado da imprensa do que sobre o estado da música, que essa todos sabemos o que vale.
chicken soup for the fuck you
Terminar um trabalho significa, entre outras maravilhas, poder apagar todos os ficheiros que entretanto se gravaram com nomes fofinhos como "merda porra", "merda", "ódio", "ódio2", "foda-se", "coiso fodido", "coiso fodido alinhado"... You get the point.
Mefisto-Mefez, volume ix
Alguns Mefistos existem. Seguem e são seguidos. E escrevem os seus mandamentos em 140 caracteres.
Aquele querido mês de Agosto
Não dava nada pelo Agosto do ano passado, mas dava tudo pelo Agosto deste ano. Qual quê. Aquele querido mês de Agosto, afinal, correctíssimo: aquele, não este.
I Want Your Candy
Jesus apareceu-me em sonhos. Pousou a mão na minha cabeça e disse: “onde escondeste os rebuçados?”. Como era um sonho, não lhe disse.
Green peace, paz podre
Imaginem o meu desconcerto quando, dias depois de ter escolhido este verde fresco, descobri que é parecido ao verde das batas dos médicos que fazem urgência no Hospital de São João. Ainda dizem que não se adequa.
the fall apart
Levou os olhos pintados como medida preventiva. Como se houvesse disciplina que sustentasse um destroço.
While I do my thing in the background
Qual quê. A vida é um jogo, sim, disputado para perder. Entretanto, os suplentes esperam uma chamada para entrar em campo, que nunca chega. No fim, ainda levam com a bola na cara.
Ditado (ninguém acredita)
Mais vale uma passarinha na mão do que duas a voar.
(Mesmo que seja por cima das nossas cabeças.)
(Mesmo que seja por cima das nossas cabeças.)
(bocejo)
Mais do que acabarem com o ponto de exclamação, bom bom era acabarem com as ondas blogosféricas.
A Sweet Summer's Night On Hammer Hill
Gostaria de informar-vos do seguinte e o seguinte é: toquei pandeireta no concerto do Jens Lekman. O público começou a bater palmas num compasso contrário ao da minha pandeireta, mas eu não ia mudar o meu ritmo por causa de 80 e tal pessoas ou lá o que era, né?
(hello) Stranger
Ouvindo o novo álbum dos Noah And The Whale, caí da bicicleta e esfolei o miocárdio.
I'm not mad
Não sei se quero saber onde queres chegar, embora queira muito saber onde queres chegar.
Sombra
Ela sabe que ele não a ama e que apenas procura a sua companhia porque lhe recorda a mulher morta. Sente-se assim com ciúmes de si mesma, invejosa de uma mulher inexistente.* Com ciúmes de si mesma, invejosa de uma mulher inexistente. A mesma nostalgia e inveja que sentimos pela mulher que fomos para o outro no início de uma relação.
*Vertigo, The Hitchcock Collection, Público
*Vertigo, The Hitchcock Collection, Público
2 out of 3 rule
Sobre Kim Novak, em Vertigo, Truffaut diz: «Não é todos os dias que se vê uma estrela americana tão carnal no ecrã. Quando a encontramos novamente na rua, no papel de Judy, com o cabelo ruivo, torna-se muito animal devido à maquilhagem e possivelmente porque não leva soutien debaixo da camisola…". Hitchcock responde de forma depreciativa: "De facto, não leva e é uma coisa de que se gaba continuamente.»*
As maminhas sem rede da Kim Novak: eis o que mais me surpreendeu em Vertigo. Maminhas é um eufemismo que ainda assim me parece apropriado – achei-as muito queridas. A partir desta frase, o texto é todo ele muito sério: a contradição entre o erotismo quase despropositado do filme e a castidade de uma época que ainda impunha que se beijasse sem alma no grande ecrã é, no mínimo, intrigante. Até porque as surpresas não terminam aqui: há ainda a cena em que Scottie salva Madeleine do rio e a arrasta até à margem com o braço sobre o seu peito e a mão praticamente sobre a sua mama. Chega a ser constrangedor de tão inesperado.
Outro aspecto surpreendente é ver como Hitchcock parece contrariado em relação à ausência de soutien da actriz, como se afinal a sua vontade de nada valesse face à de Kim Novak. Mas é natural que maminhas daquelas levassem a sua avante.
*Vertigo, The Hitchcock Collection, Público
As maminhas sem rede da Kim Novak: eis o que mais me surpreendeu em Vertigo. Maminhas é um eufemismo que ainda assim me parece apropriado – achei-as muito queridas. A partir desta frase, o texto é todo ele muito sério: a contradição entre o erotismo quase despropositado do filme e a castidade de uma época que ainda impunha que se beijasse sem alma no grande ecrã é, no mínimo, intrigante. Até porque as surpresas não terminam aqui: há ainda a cena em que Scottie salva Madeleine do rio e a arrasta até à margem com o braço sobre o seu peito e a mão praticamente sobre a sua mama. Chega a ser constrangedor de tão inesperado.
Outro aspecto surpreendente é ver como Hitchcock parece contrariado em relação à ausência de soutien da actriz, como se afinal a sua vontade de nada valesse face à de Kim Novak. Mas é natural que maminhas daquelas levassem a sua avante.
*Vertigo, The Hitchcock Collection, Público
and our hearts nearly stopped at the sound
The Dodos editaram mais um álbum para toda a vida. Chama-se Time to Die.
Misery is a butterfly
A infelicidade nem sempre deriva de factos. Perguntam-nos o que aconteceu? Nada. Não aconteceu absolutamente nada.
I am very shy, ai ai ai
Não sei porquê, a vida é muito mais difícil para as pessoas de carne e osso; parecendo que não, é bem menos arriscado ser (o) fruto da vossa imaginação.
mas mas
Em Let's Go Surfing, dos The Drums, parece-me sempre que ele diz oh lemon, i wanna go surfing, mas não deve ser. Mas eu ia.
We’re too sexy for his shirt
E depois houve aquela vez em que roubámos a camisa do vizinho do estendal, com algum esforço, porque o achávamos um chato. Aquele sisudo crominho alemão nem sonha que duas cachopas se entretiveram a vestir a sua camisa e a tirar fotografias sexy. Há gente com muito azar neste mundo.
Croma
Fui cliente habitual de um pequeno cinema em Barcelona, o Méliès, que exibia sobretudo filmes antigos. Eu via tudo. Tornei-me numa figura reconhecível porque chegava à bilheteira e dizia: queria um bilhete para a próxima sessão. Qual é o filme?
I remember learning how to dive
A minha tartaruga, ‘tadita, sente-se só. Eu também me sinto só. E o drama é que não nos podemos fazer companhia.
double entendre
Fuck the pain away: manda a dor foder e afasta a dor fodendo. A primeira parece fácil não sendo, a segunda é não raras vezes traiçoeira.
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Sim, é verdade. Oh não, azevias com feijão! Whatever. Não me aborreçam, seus sopinhas de massa, que aqui come-se atum e está-se a par de cenas. Ouviram? De cenas.
shame
Se a man is what he thinks about all day long, então por vezes eu sou a frase de Ralph Waldo Emerson que diz que a man is what he thinks about all day long, que é no que penso quando não estou a pensar em tudo aquilo que me faz pensar na frase de Ralph Waldo Emerson que diz que a man is what he thinks about all day long.
Ed McMahon, America’s Top Second Banana, Dies
Tenho pensamentos muito lúdicos. Devotos do yo-yo, amantes dos carrinhos de choque. Entre risadinhas, enviam soundbytes uns aos outros e mantêm-se informados desinformando-me. Os homenzinhos verdes do sistema nervoso simpático começaram ontem a enviar twitts às mulherzinhas vermelhas da dura-máter. Heeeere’s Johnny! A rambóia impede-me de pregar olho, por muito consertadas que se quedem as visões.
This too shall pass
Nunca consigo esconder, por mais que lhes force a abertura à luz, as sombras dos meus olhos. O naufrágio é um mau hábito -- de tão talhado à minha medida, não o recuso.
We used to stand so tall
Recolheu as dezenas de guardanapos de papel onde ela havia enxugado os olhos e, amarrotando-lhe a dor num só nó, embalou-a no bolso.
Loucura e maminhas
Quais as melhores maminhas? Como certamente concordarão, esta é uma dúvida capaz de consumir uma pessoa atrozmente e levá-la (numa maca) até à loucura, que fica ali às portas do Intermarché, embora eu às vezes a encontre nas escadas rolantes do Corte Inglés.
Uma urgência em câmara lenta
Ele vê-a pela primeira vez. Ali no meio da combustão de chapas, algo se queima mais fundo (ou derrete?). Esperámos quase uma hora para vê-los juntos no mesmo plano, mas eles nunca estarão no mesmo plano. Inventou-se o amor com carácter de urgência; mas o filme corre ao ritmo a que o amor se constrói: lentamente. O nosso olhar é moroso como é moroso o olhar dos amantes – um olhar que se demora sobre o outro. Dá-nos a sensação (hoje tão rara) de acompanhar uma história em tempo real. A câmara acompanha os seus passos (eles passeiam muito) e depois pára diante de uma parede que tem uma mesa que tem uma jarra que tem uma flor. Mas uma imagem imobilizada não abafa um movimento, aquele compasso partilhado. Naquele instante, não os vemos, como se precisássemos. Ali, a substância escapa ao enquadramento, mas não se pode ter tamanha pretensão, exibir o invisível.
juízo ético
Gosto muito das maminhas da Marilyn. São assim molezinhas e empinadinhas e e estão cada uma para seu lado, como se amuadinhas. Que fofas.
Erase Errata
A publicação de posts é, não raras vezes, um controlo de danos. Por vezes, uma pessoa incorre nessa bizarria que é ter sentido do ridículo e ri-se de si própria. Enfim, podia dar-me para pior. Enquanto por cá passeio, vou acumulando as sobras dos posts apagados e arquivando, por ordem alfabética, o meu vasto directório de culpas. Àqueles que me perdoam quando saio à rua ainda com os rolos na cabeça, o meu obrigada.
2008
Escusado será dizer que o título/poema/romance histórico e belicista/etc e tal do ano transacto é todo da Martha Wainwright: I know you're married but i've got feelings too.
O projeccionista romântico
Todas as semanas, esperava vê-la na sala. E assim que a via puxar de um livro no intervalo do filme, aumentava ligeiramente a intensidade da luz para que lesse melhor.
Baile de Outono
Os amantes amam brincar ao mata e esfola. Os amantes matam-se matando a brincar a sério. Os amantes matam e moem. E depois morrem a vida toda. A sério.
Não olhes para o que eles dizem, olha para o que eles fazem
No final de Baile de Outono, Jaana regressa a casa de Mati, de onde houvera partido, depois de um longo (longo de longa-metragem) período de silêncio. Diz-lhe que o ama, ainda. Mati não acredita, e nós compreendemo-lo bem. Diante dos dois, estende-se o lixo acumulado dos dias, como despojos de uma festa decadente, tanto quanto são decadentes os contornos de uma vida solitária e naufragada. Mati pede a Jaana que parta. Mas ela levanta-se e, em silêncio, começa a arrumar o caos das garrafas vazias. E ele, sem uma palavra, acompanha-a.
Medicine For Melancholy
O final é inconclusivo. Não sabemos como a história termina e os indícios não chegam para lhe adivinharmos a última linha. Nesta narrativa de duas pessoas que dançam pela primeira vez, sem ensaios prévios, e cujos corpos se desconhecem, a coreografia é improvisada e escrita alternadamente – um passo decide-o ele (para a frente), o seguinte decide-o ela (para trás) - com a insegurança de quem pressente a queda. Mas decisão é uma palavra errada, para um filme sobre desejos indecisos, sobre a confusão silenciosa de quem sabe o que quer (a ele, a ela) apenas para os quinze minutos seguintes*. Uma conclusão é tudo o que não é possível e é também tudo o que (ali) não interessa.
*excerto de um post do Pedro Jordão, sobre o mesmo filme.
*excerto de um post do Pedro Jordão, sobre o mesmo filme.
Treinar a nudez*
Ele disse que quem dança não pode ser totalmente infeliz. Eu assenti mas acrescentei que eu sou daquelas que acreditam que na dança também pode haver desespero. Porque Quem dança procura entender o que há para entender, por isso dança porque procura entender o que há para entender. E porque dançar é Ter no Corpo o sistema do desespero e ter no corpo o sistema da salvação, ter no corpo um único sistema que desespera e salva.*
*excertos d'O Livro da Dança, de Gonçalo M. Tavares
*excertos d'O Livro da Dança, de Gonçalo M. Tavares
dreaming only makes me blue
Sonhei que engravidava do Zé e não do Pedro, que era o meu namorado, sem que nenhum deles soubesse da troca; que tinha o filho; que o deixava morrer sem querer; que sentia alívio; que ele ressuscitava; que eu ficava simultaneamente contente e desesperada e que, chegada a casa, definhava em descontrolo. Eu com vinte e três anos e tantos sonhos, um filho ilícito, um amor destruído e um segredo fodido. Nunca se ouviu um único som vindo do bebé.
da civilidade das meninas
Era um jovem perfeito. Eu sentia-me nervosa, e disse-lho. Trocámos algumas impressões sobre o assunto e o meu coração rejubilou. A verdade é que sou uma exaltada e sinto-me agora um pouco cansada. Mas o meu coração nunca terá descanso. Serei sempre uma sentimental.
(Para uma correcta descodificação do texto, por favor consultar o Manual de Civilidade para Meninas, de Pierre Louÿs.)
(Para uma correcta descodificação do texto, por favor consultar o Manual de Civilidade para Meninas, de Pierre Louÿs.)
Identical Twins, Roselle, New Jersey, 1967
Na minha primeira aula de fotografia, em Erasmus, o professor exibiu a fotografia Identical Twins, de Diane Arbus, e informou-nos (exacto, informou-nos) de que uma das gémeas era burra e a outra inteligente, querendo saber de seguida quem era quem. Se bem me lembro, a maioria nomeou inteligente a da direita, porque sorria; e nunca ninguém admitiu que era também por ser a mais bonita. Não me recordo dos argumentos em defesa da menina que a maioria nomeou burra – talvez estivessem irritados por perceberem o preconceito na valorização da beleza, ou talvez estivessem dominados por um sentimento de justiça e de recusa dos nossos instintos mais básicos. Existe uma expressão exactamente antagónica nos seus olhos e nas suas bocas. Sorrir para uma fotografia é um sinal de inteligência? Mostrar desconforto não o será também? Se ambas tiverem atitudes diferentes pelo mesmo motivo de uma aguda consciência de si próprias, o que é que as separa? Curioso foi que ninguém tentasse questionar a sentença do professor. Porque é que uma haveria de ser burra e a outra inteligente? Só ocorre tal pergunta a quem é capaz de lhe dar resposta. Eu devo dizer que até hoje não cheguei a uma conclusão.
chuac-chuac
Dou sempre dois beijinhos. Eventualmente, deixam-me pendurada. Eventualmente, também, vêm socorrer-me para que não caia. Mas o problema é já irreversível: uma diferença de manifesto. Dizem-me que é uma questão de aprendizagem. Uma aprendizagem cínica, claro.
proud to present
É com orgulho que apresento - o importante é reprimir o ímpeto do me, que insiste em instalar-se, patologicamente, entre as últimas duas palavras.
fax interno & poesia profunda
Entre filmes imperdíveis na Cinemateca que perderei, apresentações de livros a que não irei, encontros que (como sempre) falharei e uma promessa de rebolar na relva que não cumprirei, hei-de enxotar com parcimónia os macaquinhos da cachimónia.
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Tantos anos para perceber que grande parte da angústia típica de um dia de aniversário se evita não fazendo festa de aniversário.
Domingo na Fnac
Godard sorriu-me várias vezes, flirt para o qual a minha coluna algo dorida respondeu com pouca envergadura. Deixei-o estar.
Enjoy your worries, you may never have them again
A leitura de um livro significa uma evasão – a suspensão do teu mundo pelo mergulho num outro. Mas convém não cair dentro de poços, onde a escuridão impede a leitura. Quando a tua realidade é demasiado opressora, não há escapatória possível.
Mefisto-Mefez, volume vii
Meteu-se à estrada para ir ao seu encontro. Ele morava longe, no desbravável terreno de judas. Haviam combinado encontrar-se em sua casa, onde poderiam estar à vontade, como se ela não percebesse o convite ao sexo. Pensou que cabrão e disse que sim. Um clássico. A verdade é que se viam há um mês e nem um único assalto à cueca para contar aos netos. Era uma casa grande, burguesinha. Ainda a menina ia na fase de apreciação dos livros, já ele lhe açambarcava a camisola. O ritual começara. Uma menina tem de estar preparada para tudo quando baixa as calças a um menino, principalmente se for mefisto, mas uma menina nunca está preparada para aquilo. Um mefisto que navega as águas num colete salva-vidas e não num submarino. Desolada, suspirou. Até nisto o gajo me fode. E, ainda por cima, pouco.
I’m not following you(r link)
Vencer o masoquismo é somente uma questão de disciplina. É ser menos Larry e não perguntar. É ser mais Bartleby e preferir não o fazer. Alguma arte deve levar-se muito a sério, falemos de teatro, de cinema ou de literatura. A arte do amor-próprio também.
A opção não era minha #2
O gmail informa-me do meu estado: invisible. E logo a seguir propõe: go visible. Mas só o gmail me dá essa opção.
knives won't have my back (anymore)
A facada podia até nem ser muito funda, comparativamente a todas as outras de que foram palco as tuas costas, mas foi, como uma pequena peça em falta, a que te levou ao chão de vez.
Do you copy?
O problema de um indivíduo seguir as pisadas de outro é que a sobreposição não deixa o seu próprio rasto e, quando o empenho é muito, o modelo acaba pisado.
a opção não era minha
Back to trash, é a opção que o gmail me dá quando termino a operação. Eu retorno sempre, sem birras. Não sou nenhuma criança mimada, aceito a fatalidade que a vida me reserva. Não tenho outra.
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Estou furiosa, querida, estou furiosa. Não estava prevenida para um dimensão dessas, assim de repente. Eu prevenira-a, apenas dois centímetros por mês, é quanto se deve deixar crescer os cornos. Deixá-los assim ao desbarato é irresponsável! Não estava a contar, catano, fiz a curva muito em cima de si, tinha calculado três metros e quarenta e cinco centímetros desde a última vez que a vi, e afinal já vai nos três e cinquenta e sete. Ai a puta da vida, que isto dói. A querida é que tem os cornos e eu é que fico com o verniz lascado. Não está certo.
bruit du diable
Um vai-te foder nem sempre é sinal de falta de educação, por vezes é apenas um mal necessário. Falta de educação é certas perguntas que se fazem, para as quais um vai-te foder é a única resposta.
Don’t look at me, i’m only breathing
Durante uma reunião comigo mesma, tentava perceber, empinada nos meus saltos altos, se ser mais alta é ser maior do que os homens. Não cheguei a lado nenhum. Experimentem ser mais altos com os pés na terra e a cabeça no ar – não dá, por mais que estiquemos o pescoço. É nessa altura que tentamos os pés e a cabeça na terra e, bolas, a vida melhora substancialmente.
gordura por gordura
Deixei cair um croissant cheio de manteiga em cima da crónica dos Scorpions, no Nada de Melancolia.
[mute]
(-_----_-_----_--_----_----_----_-_----_--_----_----_----_-_----_--_----_----_----_-_----_--_----_----_----_-_----_--_----_---) – frase suspensa pelo ruído em volta. As sentenças emudecidas são sensuais – deixam os lábios entreabertos.
do êxodo urbano
A Menina Limão às vezes cansa-se de ser a "Menina Limão". Não lhe apetece existir tanto. E então põe-se a existir menos. Eventualmente, aborrece-se e regressa. A Menina Limão aborrece-se muito.
2nd anniversary
A urgência não é mais que a urgência de se ser, todos os dias, como se entende, como se pode, e também como nos obrigam. Sabotar-nos também faz parte do épico que escrevemos, mas ninguém disse que um fruto aberto está condenado ao desastre. É preciso abri-lo para celebrá-lo.
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Um dia vemo-los acompanhados por quem sempre remeteram ao silêncio, como uma pronúncia interdita. Vão de mão dada. E nós, que os apreciamos com uma certa provocação melancólica, no fundo não queremos saber se há uma metade que escreve um romance. Fere-nos a imaginação e a fantasia. Mas essa informação chega-nos por interposta mediação ou por azar das circunstâncias e então pomo-nos a lamentar – podemos até fazer beicinho depois de arcar ligeiramente as sobrancelhas – e, com um sentido de justiça de quem suspira pela desordem do mundo, ficamos a depreciar os contornos da matéria revelada.
campos magnéticos
moça-bonita s.f. BOTÂNICA [Bres.] planta herbácea, com propriedades desinfectantes e diuréticas.
i think i need a new heart
Acho que preciso de um coração novo. Um coração com menos entulho, menos barulho. Com menos destroços. Com menos braços desfeitos, menos unhas cravadas - se possível sem quaisquer despojos impróprios.
Preciso de um coração maior. Quanto mais pequeno fica, mais lixo acumula. Queria um coração novo e muito grande, cheio de ar e de sorrisos embalsamados, cheio de uma resignação feliz, sem ódio, sobretudo sem ódio, e sem qualquer chama que se alimentasse do seu oxigénio. Queria um coração insuflável, para que pudesse abrir o peito e ordenar: chutem-no, pisem-no, esmagem-no, à vontade, e, no fim, triunfante, anunciar sorrindo: vejam, sacanas, este coração nem de felicidade há-de rebentar.
Preciso de um coração maior. Quanto mais pequeno fica, mais lixo acumula. Queria um coração novo e muito grande, cheio de ar e de sorrisos embalsamados, cheio de uma resignação feliz, sem ódio, sobretudo sem ódio, e sem qualquer chama que se alimentasse do seu oxigénio. Queria um coração insuflável, para que pudesse abrir o peito e ordenar: chutem-no, pisem-no, esmagem-no, à vontade, e, no fim, triunfante, anunciar sorrindo: vejam, sacanas, este coração nem de felicidade há-de rebentar.
Mefisto-Mefez, volume vi
Mais do que um nome, Mefisto é um lugar. Um lugar de grande dignidade atribuído a um filho da puta. Aos grandes filhos da puta não se lhes nega a relevância. Tampouco se lhes aponta o dedo – eles mordem. Os Mefistos formam uma matilha de contornos especiais: não andam juntos – nem lhes convém – mas reconhecem-se pelo cheiro quando se cruzam na rua, reconhecem-se pelos dentes caninos e pelos olhos raiados de sangue. Cautelosos, fazem pequenos sinais entre eles, enquanto apertam para junto de si as suas presas.
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Vestia sempre o domingo do avesso, por cima do pijama, e nunca se lembrava de o despir, todo engelhado, antes de se deitar para a segunda-feira.
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A melancolia não é uma besta quadrada. É obtusa. Abre-se em farpas e vai escolhendo os lugares do corpo onde perfurar. Tenho melancolia nos dedos, vejo-a no amolecer do papel. Tenho melancolia na boca, que a comprime e horroriza. Da boca às mãos, um trajecto fúnebre – o caminho que os mortos fazem até chegar a mim.
(A minha melancolia alimenta-se dos meus mortos.)
Passou um comboio pelo meu fazendo-o sobressaltar-se e eu com ele. A máquina levou-me o coração junto – isso e alguns vermes – aumentando-me o rasgo no peito. A Dona Tê pensa que eu nasci sem coração, mas eu sinto que ela nasceu sem cérebro. Nasceu com uma cabeça de nada, o que já é muito.
(A minha melancolia alimenta-se dos meus mortos.)
Passou um comboio pelo meu fazendo-o sobressaltar-se e eu com ele. A máquina levou-me o coração junto – isso e alguns vermes – aumentando-me o rasgo no peito. A Dona Tê pensa que eu nasci sem coração, mas eu sinto que ela nasceu sem cérebro. Nasceu com uma cabeça de nada, o que já é muito.
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Caethua. Não sei como se pronuncia, mas seja qual for a forma correcta de dizê-lo, soará sempre a bosques orvalhados no limite de cidades permanentemente enevoadas, onde uma voz se insinua como a luz dos candeeiros no nevoeiro, a pontilhar o céu e a desenhar as estradas.
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e-e-evasão vs i-i-invasão. No Piolho, antes extraterrestre que ultraterrestre, que é como me sinto quando me esqueço dos headphones. Ou quando me entornam uma cerveja em cima do casaco.
se não gostas comes
A menina da TV Cabo telefonou lá para casa. O meu pai atendeu enfastiado. Ela queria saber quais os canais mais vistos pela família. Depois queria saber se ele não pensava adquirir outros e se não estaria interessado no canal Playboy. O senhor meu pai respondeu que não. Mas a incansável menina da TV Cabo não ia desistir tão facilmente. Ela tinha um último trunfo – o melhor, o mais forte, o mais irresistível na pirâmide da argumentação. Certamente confiante do carácter irrecusável da proposta, remata: e a sua mulher não estará interessada? Olhe que tem culinária erótica.
depression is gonna kill me
Acordei com dor de cabeça. É terrível. Uma pessoa como que acorda morta para o dia. Já vi muitas depressões começar assim: um corpo demasiado imóvel para uma cabeça excessiva.
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O Inferno foi inventado ao mesmo tempo que o Inverno, por um qualquer linguista com um sentido de humor muito filho da puta.
bloody comes clean
Enquanto limpava o pó do meu quarto (é aqui que as pessoas que já moraram comigo aplaudem boquiabertas), decidi-me a ouvir velharias. Peguei no Loveless dos My Bloody Valentine e pensei é a última oportunidade que vos dou. E de repente aquilo soou-me mais que bem. Ao fim de uma audição, estava a fazer repeat. Porquê agora, se já tentara ouvir antes sem nunca ter percebido o fascínio? É inexplicável. Caso para dizer: limpei o pó do quarto e limpei essa mancha do meu currículo (e é aqui que quase toda a gente aplaude boquiaberta).
A True Story Of A Story Of True Love
I'd really like to hurt you é uma forma mais crua mas não menos verdadeira de Jason Pegg dizer: queria muito que fosses minha, queria muito poder amar-te. Sempre me pareceu uma das declarações de amor mais sufocantes: tem tanto de belo quanto de cruel e é inteiramente real.
o-meu-muito-meu-Rivette
Fui a Serralves ver La Religieuse, de Jacques Rivette. Não sabia que não era legendado e eu de francês pesco pouco mais que nada. Ver um filme sem entender a narrativa principal, faz-nos estar atentos a todas as outras narrativas. E se ver cinema é uma experiência religiosa (como não sê-lo?), esta foi ainda mais: não porque a temática se prestava a isso (embora a coincidência me divirta), mas pela entrega (ou mesmo devoção) a algo que não compreendemos totalmente. Dediquei-me, por exemplo, à narrativa das mãos de Anna Karina. Obcecada por mãos como sou e absorvida por todos os pormenores da interpretação das personagens, da composição dos cenários e da movimentação das câmaras, fui observando como as mãos das freiras, regra geral, se escondiam nas mangas e como as de Suzanne (A. Karina) se evidenciavam muito mais. Fui registando como se fechavam, como se entrelaçavam numa reza, como a unha do polegar se cravava no dedo indicador enquanto o rosto atormentado se exprimia em dor e revolta. Fiquei especialmente contente com o facto de ter compreendido o diálogo entre Suzanne e a freira lésbica, acerca do efeito da presença dos homens sobre a primeira – mas o resto foi-me escapando com frequência. Quando não entendemos os diálogos e apenas nos podemos concentrar nas expressões faciais, no tom de voz – entre gritos, sussurros, súplicas e simpatias – pomos a nossa imaginação a funcionar muito mais do que o normal e, de resto, intuímos – intuímos muito. Espero um dia poder confrontar o produto da minha imaginação com a realidade do filme, mas até lá La Religieuse é aquilo que eu já chamo my own private Rivette.
il ragazzo
Em Fellini, fascina-me não só o eterno retorno à infância, como também – e mais ainda – o modo como nele se dá esse retorno. Aquilo que a câmara captura parece ampliado, caricaturado, exagerado. Fellini parece filmar uma cena de infância segundo a visão exacta e intacta da própria criança e não segundo o adulto que a recorda e que inevitavelmente a transforma, com a sua sensatez e parca imaginação, numa história plausível.
the big picture, i see
Esta semana, mandei calar um casal que conversava e beijocava e ria no cinema – muito provavelmente vitimados pelo poder que Pasolini exerce sobre as crianças. No dia anterior, tinha-me virado para trás bruscamente, numa mensagem clara à senhora que me empurrava a cadeira com os pés – inquietação Felliniana já tinha eu que sobrasse e não era a coçarem-me as costas que a resolveria. Na exibição d'Aquele Querido Mês de Agosto – decorria, por sinal, um Agosto bem querido, como há muito não se fazia sentir – ao primeiro fotograma, galinhas numa capoeira. E, a dada altura, música pimba. Resignada, deixei as senhoras comadres que preenchiam a fila de cadeiras atrás da minha cacarejar à vontade no seu tom afectado. É que, reparem, completava-se o quadro.
Mefisto-Mefez, volume V
Mefisto foi-se embora.
E agora? - perguntou-se a menina - , who is gonna hurt my feelings?
E agora? - perguntou-se a menina - , who is gonna hurt my feelings?
Mefisto-Mefez, volume IV
Ela tinha-lhe um ódio complacente, sentimento apenas natural para com qualquer diabo que nos tem nas mãos (nas palminhas e nos dedos). Mas ela odiava-o particularmente quando o via levantar a camisola da amiga para que o frio repentino lhe deixasse os mamilos erectos – a infracção de um vislumbre não consentido. Toldada pelo ciúme, dizia-lhe: só podes ser mau para mim! Devo ser eu a tua única cobaia!
O desejo de exclusividade não conhece sensatez, como tudo o que projectamos no universo dos monstros.
O desejo de exclusividade não conhece sensatez, como tudo o que projectamos no universo dos monstros.
o homem sem qualidades
Em conversa, disse-lhe: namorei imenso o homem sem qualidades. Referia-me ao livro do Musil visto a preço de feira no Mercado Ferreira Borges, mas a verdade é que, num aligeirar do discurso escrito, acabara de resumir grande parte da minha vida amorosa.
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Apesar de saber-se atraída, reprimiu o desejo de lhe tocar. Pressentindo uma nebulosidade danosa, insistiu no olhar, esperando obter uma visão clara. Desenhou com os seus próprios olhos um traço imaginário e percebeu que da divisão do semblante em dois resultava uma dualidade moral: testa, olhos, nariz – metade acolhedora; boca, queixo, barba – metade temível. Os dentes a entrever-se nos lábios quase inexistentes, chamavam à trama uma densidade animal e perigosa – todos eles caninos. Os seus dentes afiados não ofereciam almofadas para encosto prévio. Dali, saía-se mordido. Do toque, imediatamente a ferida. Sem salvação, sem amortecimento, sem retorno e, do contorno, a marca.
people are strange when you're a stranger
– Tenho um colega que acredita que numa vida passada foi um cão. Então, quando está muito irritado, põe-se a ladrar.
– A sério?
– Juro-te.
– Olha, mas tens de lhe explicar que isso não é possível. Os cães não reencarnam em humanos. Humanos reencarnam em humanos, cães em cães, não há misturas.
– A sério?
– Juro-te.
– Olha, mas tens de lhe explicar que isso não é possível. Os cães não reencarnam em humanos. Humanos reencarnam em humanos, cães em cães, não há misturas.
Welcome to Elsinore
Às seis da manhã, quando a insónia me sabe prestes a tentar o sono, deito-me e aguardo os gritos das gaivotas. Sei que não tardarão. Vêm alimentar-nos as almas noctívagas com a sua loucura, num voo desenfreado a rasar o limite respirável do ar. Desconheço se abraças o lado mau da sua ciência quando lhes chamas tuas – mas não há gostar que não seja inquieto.
No pino do Verão, pinar pinar
A verdade é que só sei fazer o pino contra a parede. Caindo, não se cai, antes se escorrega (en)costas abaixo – menos mal, que só o coração se parte, mantendo-se o pescocinho intacto.
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repito diariamente um
exemplar exercício de ausência
sou corpo massa de nevoeiro
ao engano do espelho
que nada devolve.
exemplar exercício de ausência
sou corpo massa de nevoeiro
ao engano do espelho
que nada devolve.
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O Código D' Arwin. Os tigres e os leopardos não são os únicos animais que pelam as presas antes de as comerem.
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Férias s. f. sucessão de actos falhados. Interrompemos a depressão para nos espalharmos ao comprido.
Mister!, mister!, I have a tiny tiny bruise, right here. It really hurts! Can you see it?
Um dia voei – sem metáforas e sem eloquência. Se o voo se deu por impulso de uma bicicleta em pino, tal é um pormenor (será?). Qualquer voo que se preze acaba em aterragem, diz a lei da gravidade – e foi, de facto, grave. A minha deu-se no alcatrão, e em grande. Tudo pela animação da pasmaceira das terras alentejanas, que é como quem diz Arraiolos, porque me tinham alertado de que lá não se passava nada. De facto, era verdade, que o pessoal médico (ah. ah.) do Centro de Saúde da terriola até franziu o sobrolho à obrigação de levantar o rabo do cadeirão, ao mesmo tempo que interrogava: já chegaram os aliens? É agora, santíssima? Mas estou a adiantar-me. Como boa moça de educação católica que sou, dei a minha face (esquerda) ao embate, e entenda-se por face toda a metade esquerda do corpo. O que significa ter poupado a metade direita e ter decidido estuporar a esquerda não sei, e gostaria de pensar não ter sofrido uma queda freudiana de motivações políticas, até porque eu ia jurar que teria preferido estuporar o outro lado. Querem que eu passe à frente e relate de uma vez por todas as mazelas, não é? Azarinho, não o farei. Serve esta história para homenagear o meu sentido de humor, o verdadeiro resistente à desgraça. Eu, que sou alarmista e paranóica, fui dando provas várias ao longo da vida (houve acidente muito pior aos oito anos) da minha faceta contraditória, ao conseguir manter a calma ou até a conseguir brincar em situações de (auto)desgraça. No caso, valeu-me estar com amigos, que imediatamente se acercaram, deparando-se com um corpo imóvel no meio da estrada, pontuado por um rosto sorridente que perguntava: acham que parti a bacia? Serve esta história também para pintar (ou tirar a pinta a)o povo alentejano: é mesmo verdade que não há nada que os abale. Não se passa nada? Olhe, acabou de aterrar um meteorito, compadre. Eh pá, já lá vamos (amanhã ou assim). Passavam carros e nenhum parava. Eu acenava-lhes e ria-me, voltem sempre, que amanhã, por este (não) andar, ainda cá estará a aberração para mostra. O pior foi depois, quando me levantaram e optaram pelo baixar do véu sobre a anca, que revelaria a origem da minha dor. Aí, não houve sentido de humor que resistisse. No fundo, serve mas é esta história para falar do quão ridículos conseguimos ser: com dores e estatelada no chão, estava-se mesmo bem. Ao vislumbre da ferida, funda e feia, ia desmaiando.
fantasmas
Sou nocturna e noctívaga - acumulo cúmulos. Habito as horas dos sonos alheios, as desoras do adormecimento geral; e escuto silêncios que amplificam absolutamente tudo. Animal da noite, animal solitário, animal do avesso. Predador? Não é verdade que nada capturo.
coquetterie
- E das minhas mãos, gostas?
- Não. Mas não duvido que consigas fazer-me mudar de ideias.
- Não. Mas não duvido que consigas fazer-me mudar de ideias.
It's a sight to be hold
A primeira parte do corpo do outro onde me demoro são as mãos. Reparo nas mãos de toda a gente (e decoro-as).
Bailarina, nunca mais esquecerás nada
Dois corpos colados a cuspo ondulavam. Ele interrompeu o beijo e disse-lhe dance for me, fanciulla gentil. E depois disse-lhe laugh a while, i can make your heart feel, a mão pousada no peito dela. Promessa feita, abraçou-lhe o sorriso e o engano e uma alegre contracção de músculos. A mão inquieta deslizou para os seios; em movimentos circulares foi-se assegurando de que o coração, entre portas, palpitava. Quando em frenesim, mordeu-lho e, amparando-lhe os batimentos com a mão em concha, perguntou-lhe e agora?, sentes?.
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A chuva soltou as bestas. E as bestas, honrando o nome, fazem do coração a arena para a digladiação.
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Chamamento por telemóvel? 9666*****. Porque só uma terça parte da minha identidade é diabólica, sendo que a outra é divina.
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Sabes?, quando um homem se atira a uma mulher, convém que saia do Audi, senão é bem capaz de atropelá-la.
O picheleiro fetichista, II
Tocam-me à campainha, ainda a que está do lado da porta. Estou a dormir, levanto-me cambaleando, visto uns calções curtos e um top de alças. É novamente o picheleiro. Ocorre-me que não estou vestida o suficiente para um picheleiro. Desta vez vem arranjar-me a sanita. Estão sempre a soltar-se-lhe os parafusos (como a mim), não oferece estabilidade (como eu). [À terceira comparação com uma sanita, talvez o melhor seja fazer uso da banheira para cortar os pulsos] O tipo vai fazer o seu trabalho e a dada altura chama-me.
- Não se importa de se sentar na sanita?
- Desculpe? Não acha que está a passar das marcas, seu porco fetichista?
Claro que não disse nada. Sentei-me na sanita, sob os olhos do animal, como uma menina bem comportada. Depois, abanei-me, para confirmar que era só eu que abanava e não a sanita. Está tudo bem. Está tudo bem, o caralhinho. Primeiro, conta-me o tempo do banho. Agora, vê-me na sanita. Passou da imaginação à concretização com uma pinta de mestre. Saberá ele porventura (agora sim) ter tido mais acesso à minha privacidade do que a maior parte das pessoas que me foram íntimas? Mas que mundo é este, caramba?
- Não se importa de se sentar na sanita?
- Desculpe? Não acha que está a passar das marcas, seu porco fetichista?
Claro que não disse nada. Sentei-me na sanita, sob os olhos do animal, como uma menina bem comportada. Depois, abanei-me, para confirmar que era só eu que abanava e não a sanita. Está tudo bem. Está tudo bem, o caralhinho. Primeiro, conta-me o tempo do banho. Agora, vê-me na sanita. Passou da imaginação à concretização com uma pinta de mestre. Saberá ele porventura (agora sim) ter tido mais acesso à minha privacidade do que a maior parte das pessoas que me foram íntimas? Mas que mundo é este, caramba?
you can't survive on ice cream
Quero
filosofia ao pequeno-almoço
ficção ao almoço
uma foda ao jantar
(apontamento poético)
filosofia ao pequeno-almoço
ficção ao almoço
uma foda ao jantar
(apontamento poético)
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Não me sinto bem em bikini. Não há nada de errado no meu corpo, mas o meu corpo existe no meu cérebro. Há muitas coisas erradas no meu cérebro.
Alive?
Pergunta - Qual é o antídoto para o concerto de uns Rage Against The Machine moribundos?
Resposta - ouvir, no regresso a casa, What Are All These Bands So Angry About?, Sparks.
Resposta - ouvir, no regresso a casa, What Are All These Bands So Angry About?, Sparks.
Alive? Death To Everyone.
Se eu descesse ao nível do público que "assistiu" ao concerto dos Spiritualized, chamava-lhes filhos da puta, cabrões desrespeitosos, infantilóides, charrados, bêbados, escumalha mal-educada, animais que vão a festivais sem lhes interessar a música e sem lhes interessar que aos outros lhes interesse a música, etc-etc-etc, mas não vou fazê-lo. Se eu quisesse falar do público que não assistiu, verdadeira ou presencialmente, ao concerto dos Spiritualized, teria de classificar milhares de pessoas menos dez - daria muito trabalho.
Sex shop
Enquanto lia um livro à mesa do café, apercebi-me de estar a ser observada de relance por um tipo acabado de chegar. Devolvi-lhe o olhar e dei as boas-vindas ao flirt. Repetimos o ritual em dose q.b., até ele escolher a sua mesa e acomodar-se. Estávamos no café de uma livraria. À saída, não resisti a flirtar com os livros. Escolhi o Marquês de Sade (o flirt é bonito, mas prefiro the real thing e quanto mais real melhor) e aquando do acto de pagamento apercebo-me de que o tipo se plantou ao meu lado, à espera da sua vez para pagar. Inevitavelmente, ocorreu-me que este gajo que ainda há pouco estava a flirtar comigo, estava naquele momento a olhar para o meu Marquês de Sade e a pensar ah sua ganda maluca. Em certas compras deveríamos ter o direito à privacidade.
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A angústia da criação. Puta. Sempre que se instala, revolve-me a casa. Deixa-me as luzes todas acesas, gasta-me as baterias. Uma gaja vai à gaveta buscar pilhas e a puta gastou-as todas. Um dia fui-me deitar e a gaja tinha-se enfiado na minha cama! Ah carago, se eu te ponho as mãos em cima! Fico passada, não há cachimónia que aguente.
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Era lésbica. Tinha piercings. Referia-se ao homem que os fez como o primeiro homem que me penetrou.
O picheleiro e a mulher só – a história do costume (ou nem por isso)
Hoje de manhã tocaram-me à campainha, a que está do lado da porta. Era o picheleiro. Queria ver se a minha banca funcionava bem, porque parece que as dos dois vizinhos imediatamente acima estão em guerra. Tendo verificado a declaração de neutralidade da minha banca, quando está prestes a sair, diz-me: sou capaz de ter de voltar, menina. Respondi-lhe que ia naquele momento tomar banho, informação que me deixou atrapalhada. Não se preocupe, não devo precisar de voltar.
Estou a vestir-me, depois do banho tomado, e tocam-me de novo à campainha, ainda aquela que fica do lado da porta. Diz-me o picheleiro: esperei até deixar de ouvir o depósito de água. Isto significa, mais coisa menos coisa, que aquele desconhecido soube exactamente quanto tempo durou o meu banho. Durante esse tempo, pôde imaginar, ou especular com o seu colega, a que partes do corpo me dedicava e quanto tempo dedicava a cada uma. Depois, estimou o tempo que levaria a vestir-me, desde que deixou de ouvir o depósito de água até poder voltar a bater-me à porta, o que lhe valeu uma sucessão de imagens mentais ainda mais calculadas e precisas. Conclusão, de repente, um total desconhecido soube mais da minha privacidade que praticamente qualquer pessoa que conheço.
Estou a vestir-me, depois do banho tomado, e tocam-me de novo à campainha, ainda aquela que fica do lado da porta. Diz-me o picheleiro: esperei até deixar de ouvir o depósito de água. Isto significa, mais coisa menos coisa, que aquele desconhecido soube exactamente quanto tempo durou o meu banho. Durante esse tempo, pôde imaginar, ou especular com o seu colega, a que partes do corpo me dedicava e quanto tempo dedicava a cada uma. Depois, estimou o tempo que levaria a vestir-me, desde que deixou de ouvir o depósito de água até poder voltar a bater-me à porta, o que lhe valeu uma sucessão de imagens mentais ainda mais calculadas e precisas. Conclusão, de repente, um total desconhecido soube mais da minha privacidade que praticamente qualquer pessoa que conheço.
Mefisto-Mefez, volume III
Três anos depois do Holocausto, Mefisto dirigiu-se à menina e disse-lhe desculpa-me todo o mal que te fiz. A menina ficou desiludida. Qual é a utilidade dos monstros, se também eles são nossos amigos?
Mefisto-Mefez, volume II
Mefisto disse:
– Se não fores até ao fim, ficam a doer-me os testículos.
A menina acreditou, antecipando a dor infligida. Agradada com a ideia de o fazer sofrer, imobilizou implacavelmente a mão, interrompendo o acto. As meninas são uma criação divina e não têm outra missão senão fazer salivar os monstros.
– Se não fores até ao fim, ficam a doer-me os testículos.
A menina acreditou, antecipando a dor infligida. Agradada com a ideia de o fazer sofrer, imobilizou implacavelmente a mão, interrompendo o acto. As meninas são uma criação divina e não têm outra missão senão fazer salivar os monstros.
<3/7
O coração também se corta em fatias. Não pela mão do dono, que só dispõe de um ângulo morto, no que à anatomia diz respeito. A obra é sempre de um intruso, chamemos-lhe recém-chegado estrangeiro a terra fértil. Acontece no escuro, sem aviso e em silêncio. Um dia acorda-se e dá-se pela falta. À matança nem sempre se responde com matança. O amor é uma morte consentida. Tu consentiste, ele não. Pousa a faca, tu daqui não levas nada.
Mefisto-Mefez, volume I
Todos os dias ela reza pela alminha (alma pequena e estreita) do pobre Diabo que a tomou por cobaia em importantes experiências científicas, da ordem dos três dês (3d): dolorosas, diabólicas e danosas. Corria a adolescência - tempo de aprender como se perfura um corpo até rachar, como se transforma um cérebro em playstation e como se corrompe uma inocência como quem estica um elástico sem nunca o deixar rebentar. Ela agradece a lição. Pensar que hoje podia ser boazinha.
What a way to start a fire
Gosto de mulheres de facas nos bolsos. De vez em quando a faca rompe o bolso, ela nem queria. Gosto de mulheres assassinas por acidente. Mulheres que carregam a iminência de um desastre no sorriso. De vez em quando o sorriso descai para o punho fechado e abre-se a mão ao golpe. De vez em quando o golpe acerta nela própria. Normalmente, os pequenos crimes matam mais que os noticiados no jornal. A doçura também pode ser um crime, mais certeiro que qualquer outro e bem em cheio no peito. Algures entre a doçura e a demência, está a Scout Niblett, num (des)equilíbrio de forças. Há cinco anos que me diz ao ouvido que a febre pode salvar aquilo que a sanidade não consegue. A Scout Niblett e a sua voz de lâminas debaixo da língua são presença habitual nas nossas noites como dj’s – por coincidência, é o primeiro nome que me lembro de passar numa noite acelerada (o tema Big Bad Man) e é o primeiro nome que me lembro de passar numa noite calma (o tema Wet Road). Não é exagero dizer que continua a parecer-me irreal a iminência do concerto da Scout Niblett no Mercado Negro. Os sonhos não costumam concretizar-se, muito menos excendendo-se a si próprios. O que quer que seja que aconteça hoje à noite, ficará para a história – para a história do Mercado Negro, para a história da música, para a história das nossas vidas-todas-fodidas, para a história dos nossos corações remendados.
Do melhor que tenho mordido
Poderia ser um filme de vampiros. Não é bem. Poderia sê-lo, que eu não me importava: gosto de vampiros. Do morder para viver. Do morder o mundo.
Let The Right One In, de Thomas Alfredson (Suécia), exibido este ano no IndieLisboa, serve-nos um prato diferente. Há ali uma certa ideia de inocência, tanto quanto há uma certa ideia de perversidade – é na ambiguidade, na diluição destes dois pólos, que reside o fascínio. Já aqui disse algo parecido: a esta ideia tendo a associar a das bonecas às quais arrancamos a cabeça ou cortamos o cabelo. Há também por ali uma reflexão acerca da natureza humana, dissecada através dos corpos e das mentes de duas crianças de 12 anos. Na verdade, apenas o rapaz, de uma beleza clássica, loiro e frágil, tem 12 anos. A rapariga, morena, de feições estranhíssimas, que por vezes lembram as deformações faciais induzidas por Chris Cunningham às suas personagens, tão estranhas quão fascinantes e incrivelmente belas, adensadas num corpo magro mas forte e elástico, a rapariga-vampiro tem 12 anos há demasiados anos. Carrega o fardo de ser uma Peter Pan na Terra da Felicidade Nunca – tem todos os desejos a par dos desencantos de uma alma que envelhece, mas que envelhece dentro de uma jaula de ossos infantis. Tão pequena e tão morta. A vampira ostenta uns olhos esbugalhados de desencanto. Vemos a sede de fantasia de mãos dadas com a sede de sobrevivência e vamos observando esta luta de forças entre a infância e a corrupção da mesma, através de uma identidade votada à imprecisão. Esta história, que se pode abreviar à relação entre uma pessoa e uma criatura, não poderia ser mais humana e isso é o que a torna tão admirável. A cartografia, ei-la completa: a solidão, o amor, a crueldade, a morte, a injustiça, a sobrevivência, as escolhas difíceis, as provas de amizade, as almas perdidas, a vingança, a sede de liberdade, a renúncia por amor, o não sabermos quem somos e o não sabermos que lugar ocupar no mundo e na vida dos outros. Pelo meio, há também uma lindíssima cena de amor, de uma ternura comovente: dois pequenos corpos deitados, dois braços iluminados a espreitar fora da colcha, dois dedos de uma mão em passeio pelo braço alheio.
A relação entre as duas crianças só é possível porque também o débil loiro é um marginal e um marginalizado. Espeta a sua faca de bolso no tronco de uma árvore e grita guincha, porco, guincha!. Ela diz-lhe: Nós somos iguais. Tu gostavas de poder matar pessoas. Eu tenho de matá-las para sobreviver.
Let The Right One In, de Thomas Alfredson (Suécia), exibido este ano no IndieLisboa, serve-nos um prato diferente. Há ali uma certa ideia de inocência, tanto quanto há uma certa ideia de perversidade – é na ambiguidade, na diluição destes dois pólos, que reside o fascínio. Já aqui disse algo parecido: a esta ideia tendo a associar a das bonecas às quais arrancamos a cabeça ou cortamos o cabelo. Há também por ali uma reflexão acerca da natureza humana, dissecada através dos corpos e das mentes de duas crianças de 12 anos. Na verdade, apenas o rapaz, de uma beleza clássica, loiro e frágil, tem 12 anos. A rapariga, morena, de feições estranhíssimas, que por vezes lembram as deformações faciais induzidas por Chris Cunningham às suas personagens, tão estranhas quão fascinantes e incrivelmente belas, adensadas num corpo magro mas forte e elástico, a rapariga-vampiro tem 12 anos há demasiados anos. Carrega o fardo de ser uma Peter Pan na Terra da Felicidade Nunca – tem todos os desejos a par dos desencantos de uma alma que envelhece, mas que envelhece dentro de uma jaula de ossos infantis. Tão pequena e tão morta. A vampira ostenta uns olhos esbugalhados de desencanto. Vemos a sede de fantasia de mãos dadas com a sede de sobrevivência e vamos observando esta luta de forças entre a infância e a corrupção da mesma, através de uma identidade votada à imprecisão. Esta história, que se pode abreviar à relação entre uma pessoa e uma criatura, não poderia ser mais humana e isso é o que a torna tão admirável. A cartografia, ei-la completa: a solidão, o amor, a crueldade, a morte, a injustiça, a sobrevivência, as escolhas difíceis, as provas de amizade, as almas perdidas, a vingança, a sede de liberdade, a renúncia por amor, o não sabermos quem somos e o não sabermos que lugar ocupar no mundo e na vida dos outros. Pelo meio, há também uma lindíssima cena de amor, de uma ternura comovente: dois pequenos corpos deitados, dois braços iluminados a espreitar fora da colcha, dois dedos de uma mão em passeio pelo braço alheio.
A relação entre as duas crianças só é possível porque também o débil loiro é um marginal e um marginalizado. Espeta a sua faca de bolso no tronco de uma árvore e grita guincha, porco, guincha!. Ela diz-lhe: Nós somos iguais. Tu gostavas de poder matar pessoas. Eu tenho de matá-las para sobreviver.
Café Müller
Meu amor, aprendemos demasiado bem a lição. Ensinaram-nos o botão repeat, esconderam-nos o rewind.
Don't wait that long
Pintaram um cabo de alta tensão de
vermelho
e chamaram-lhe semáforo.
Um corpo confuso parado no trânsito
à espera de autorização para avançar.
vermelho
e chamaram-lhe semáforo.
Um corpo confuso parado no trânsito
à espera de autorização para avançar.
Catastrophe Keeps Us Together
O que têm em comum Sócrates, Ferreira Leite, Francisco Louçã e o sobrinho do Pina Moura, que foi meu colega na escola secundária? Resposta: estavam todos no meu sonho, ontem à noite. E a melhor parte foi que nos divertimos a valer no Parlamento e, à saída, o Louçã riu-se das minhas piadas, como se quisesse ser meu amigo. Ainda bem que tudo não passava de um sonho, não gosto de fazer desfeitas a ninguém.
os Corações foram feitos para serem partidos
Um filme que começa por sondar histórias em processo de ruptura e outras que se adivinham poder chegar a bom porto mas que, surpreendentemente, acaba na desolação total, sem um único finalzinho sorridente, dar-me-ia motivos para abraçá-lo. Um filme em que tudo se desmancha lentamente, em que os corações, todos eles solitários, vão submergindo ora gelados ora congelados, debaixo da neve que atravessa implacavelmente os cenários, até os interiores, teria tudo para eu adorá-lo. Mas não, apenas gostei medianamente, tendo chegado mesmo a irritar-me. Talvez eu estivesse num dia mau. Ou talvez não estivesse num dia suficientemente mau. Falamos em 2009.
ímpetos homicidas e ressacas emocionais
Saio de casa à procura de ar (não percebo onde se esconde) e visto a minha cara mais triste (a verdade é que estou realmente triste). Algo se desmorona quando o domingo, já por si insuportável, começa às cinco horas da tarde. O tempo que resta para a chegada de um novo dia igual ao anterior custa ainda mais a passar. Ao fim de quinze minutos a caminhar sob a luz branca acinzentada de um Porto adormecido, (a vida esconde-se no interior dos seus órgãos, como um pudor ou como um crime) e depois de ter sido exposta à história mais mirabolante e detalhada, com vista ao chamamento da minha comiseração (desculpa pá, mas tenho uma faca enterrada nos pulmões e os trocos que me chocalham nos bolsos são para pagar a minha última transfusão de cafeína antes de sucumbir à morte que espreita), encontro um café aberto. Merda, uma cara familiar. Se entrar, tenho de fingir que estou interessada em saber como foi a vida em Paris e eu estou absolutamente a borrifar-me para a vida em Paris, aliás eu estou absolutamente a borrifar-me para a vida dos outros. Muito me agradaria que o sentimento fosse recíproco e me deixassem em paz. Portanto, ainda não é desta que me sento a fingir que leio o Pastoral Americana, quando a verdade é que penso na miséria emocional onde me esmigalho e na possibilidade tão tentadora de destruir por completo alguém cuja existência me é insultuosa. Tenho o poder de arruinar uma vida e não o faço. Ter princípios é uma chatice. Uma pessoa tem de se armar em adulta de absoluta rectidão e reprimir os ímpetos homicidas em nome dos valores e do respeito por nós próprios. Entrei na Fnac, claro, como se tivesse outra opção. Está uma velha a tossir imparavelmente, na mesa atrás da minha. Acalmo a minha vontade de lhe curar a tosse a murro. Antes de me sentar à mesa do café, passeio a tristeza entre os livros e os meus olhos imobilizam-se sobre o nome Filipa Leal. O Problema de Ser Norte. Entretanto, apagam as luzes do café da Fnac. Estou a ser expulsa. Já não bastava esforçar-me por não expulsar a doença pelos olhos. Vejo-me então obrigada a arrastá-la entre os recortes dos prédios, à cadência dos empurrões do vento. Vim de tão longe para ler e não li nada. Não é possível ler em casa. Aliás, não é possível fazer nada em casa. O reduto de muitos é o sufoco de outros.
How strange, innocence.
Admiro tanto quanto desprezo a inocência dos que nunca amaram. Acreditam compreender a importância do passado para o outro, mas é precisamente aí que falham: não é passado, é presente. Sempre.
you've got to go straight ahead
Todos as noites passeio os meus fantasmas regulares na intermitência luminosa dos candeeiros. Furo o silêncio das calçadas com o compasso das minhas dezenas de respirações em uníssono. Não há solidão maior do que a que se faz acompanhar de fantasmas. Estranho, isto. Quanto mais povoado é o homem, maior a sua solidão.
Citroen
Todos temos um corpo dividido entre várias velocidades, direcções e mudanças. Um corpo de portas e janelas, que faz travagens bruscas, que só sossega com travão de mão e que tem um ponto morto. Um corpo com um sinal vermelho interno e com necessidade de combustível. Um corpo que marcha à custa de mais ou menos cavalos, que embate noutros corpos projectando-os no espaço, que atropela, que se excede, que polui. Um corpo perigoso com o coração aos pés, espelhos retrovisores e um escape. Todos temos um corpo de circulações tóxicas, borracha queimada e metal torcido sob pele de tinta.
um corpo de excesso feito cinzas
Perdi 7 quilos. Ainda só recuperei uns 2. Entretanto, perdi também a esperança de os recuperar tão cedo e às vezes pergunto-me se quero. Visto um número abaixo de calças. Visto dois números abaixo de soutien. Tenho duas covas debaixo dos olhos, mas já recuperei uma pequena parte das minhas bochechas. Pelo menos agora existem. São 4 os cabelos brancos. Tenho-lhes um certo carinho. Nunca tive o cabelo muito comprido, mas agora quero que chegue ao chão. Da última vez cortei-o tão curto, fiquei a sentir-me ainda mais feia. Agora sou bonita de novo. São bonitos os meus ossos, as minhas escápulas salientes. Até as minhas mãos feias são bonitas. O meu pescoço. O meu pescoço é longo, inclinado para as árvores, umas vezes busca a beleza, outras espera que lhe caguem em cima. Hoje deitei fora as minhas calças-saco-de-batatas. O meu corpo é isto que se vê. É pegar ou largar. Normalmente é pegado e largado. Eu sou muito mais podre do que se vê, mas isso eles não dizem. Não sabem. Teriam de abrir-me e olhar para dentro. Mas eles só querem abrir e olhar para o lado, enfiar a cabeça nos lençóis. Têm medo de olhar para dentro. Além disso, cheira mal.
beat (health, life and fire)
A noite chega com o eco das respirações adormecidas. A minha noite não chega porque não chega a partir. A minha respiração eu sei que existe, dizem-me dela as arritmias e isto não é uma metáfora. Olho para o meu peito – entre os meus seios outrora robustos está um coração cujos batimentos descortino sob a pele. Há anos que assisto ao mesmo espectáculo e continua a impressionar-me. O meu coração a lembrar-me que bate.
Beirut
Espera-nos uma arma de amor maciça, um assalto gentil aos ossos, um veneno dissolvendo-se no sangue, docemente.
The sadness is mine.
Tenho uma tristeza redonda mas incontornável. Carrego-a. A maior parte do tempo carrega-me ela a mim. Tenho-lhe, por isso, a estima do bicho abraçado pela própria toca. Não devemos desprezar o que nos acolhe nos braços sem reservas. Eu não penso se gosto dela, não é equacionável. Vejo a forma como se mantém intacta pelas estações, como escarnece das árvores que se renovam. A minha tristeza não se atira ao chão como as folhas, não se despega da pele quando tomo banho – antes me turva a água como me turva os olhos. Soube-lhe o travo desde o início, veio traindo a saliva ao primeiro beijo. Às vezes a tristeza passa dos meus fluidos para os teus e fecunda-te. É mais perigosa que o teu esperma. Não te enganes com os meus beijos, repara antes nos meus olhos. Tenho uma tristeza fotogénica. Uma amiga viu-me o rosto impresso e disse é este o teu olhar triste. É uma tristeza invejável. Mais verdadeira que muitas entregas de corpos na imprecisão da madrugada.
The sadness is mine
It’s why you're not healing me
[Ryan Adams]
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Hoje nada tenho a dizer ao mundo. ou
melhor.
tenho a boca a rebentar de mudez.
calo-me de boca suja.
eu sou suja, repara.
e até isso é mentira.
melhor.
tenho a boca a rebentar de mudez.
calo-me de boca suja.
eu sou suja, repara.
e até isso é mentira.
Luzes no Crepúsculo
O amor escraviza, mas é a única libertação.
Caetano Veloso
Estranho este papel incontornável do amor: a capacidade para arruinar e para salvar da própria ruína a que antes condenara.
Caetano Veloso
Estranho este papel incontornável do amor: a capacidade para arruinar e para salvar da própria ruína a que antes condenara.
What's wrong with us?
Se Wes Anderson desenhasse as suas personagens, do traço resultaria uma caricatura. Não uma caricatura tradicional, com traços proeminentes sublinhados para efeitos de escárnio, mas uma caricatura que amplia idiossincrasias. Wes Anderson recorre ao nonsense e ao exagero para amplificar o nonsense que reveste a normalidade das nossas vidas. O absurdo nunca nos distrai da mensagem e nós rimo-nos e sorrimos por dentro. Reconhecemos o jogo. É-nos tudo muito familiar. A vida rouba-nos a inocência tanto quanto nos rouba os anos. Custa crescer. Custa ainda mais crescer tentando preservar uma parte de nós pura, uma que resista, uma que ainda saiba reconhecer a inocência para quando é preciso fazer uso dela.
A composição espacial e a cor dos cenários são estudadas até ao mais ínfimo pormenor e é curioso que esteja tudo tão bem enquadrado para albergar personagens tão desenquadradas na vida. É este o poder de uma fotografia Anderson: a aparente contradição entre a absoluta harmonia e a estranheza dos corpos que a habitam. Mas a contradição não existe. Porque se todos os objectos estão no lugar, não interessa demorarmo-nos sobre eles. Os elementos visuais redireccionam-nos os olhos para o centro. Concentremo-nos nos desencontrados, aqueles homens cheios de fé inabalável que nos olham. Fitamo-nos mutuamente. Compreendes-me tão bem quanto eu a ti?
A composição espacial e a cor dos cenários são estudadas até ao mais ínfimo pormenor e é curioso que esteja tudo tão bem enquadrado para albergar personagens tão desenquadradas na vida. É este o poder de uma fotografia Anderson: a aparente contradição entre a absoluta harmonia e a estranheza dos corpos que a habitam. Mas a contradição não existe. Porque se todos os objectos estão no lugar, não interessa demorarmo-nos sobre eles. Os elementos visuais redireccionam-nos os olhos para o centro. Concentremo-nos nos desencontrados, aqueles homens cheios de fé inabalável que nos olham. Fitamo-nos mutuamente. Compreendes-me tão bem quanto eu a ti?
You’re not that tough
Não sou uma pessoa empática. Sei que não teria perfil para trabalhar em hospitais a aliviar a dor dos enfermos. Há dias, a minha empregada agarrou-se a mim em pranto e eu não soube se lhe havia de retribuir o abraço. O meu gesto resultou numa espécie de abraço manco, acompanhado de palavras atropeladas pelo desconforto. Parece que tenho uma deficiência emocional, uma peça em falta, aquela que nos permite facilmente colocar-nos no lugar do sofredor e sentir o que ele sente e agir em conformidade, com a doçura que advém dessa compreensão. Os primeiros contactos são geralmente enganadores. Tenho um rosto fechado. Averiguo a existência de certas características na outra pessoa antes de o abrir.
É como ter uma espécie de empatia em funcionamento radar: detectados certos pontos de interesse, ela actua. A atenção é agora genuína e a disponibilidade automática. Não é fácil admitir o que não joga a meu favor: não sou muito tolerante. Mantenho distância. Olá, tudo bem? e constato que me esqueci de sorrir. Mas nem sempre me apercebo da minha postura e é por isso que por vezes me choca saber que certas pessoas me acham antipática. E eu a achar que era tão simpática. Não existe orgulho nem arrogância nesta confissão. Não ser empática é um defeito. Sê-lo demasiado também. É desinteressante conseguir ler uma pessoa imediatamente e demasiado bem. Pouco espaço resta para a criação da expectativa, para o advento da surpresa.
A pessoa que não percebe existir em mim doçura iminente jamais se sentirá intrigada pela ambiguidade. As nossas melhores qualidades, como a capacidade para sermos doces, em pessoas pouco empáticas, só se manifestam perante outras que vão demonstrando merecê-lo. A nudez não é um acto. E muito menos se esgota em si mesma. Não acontece, vai acontecendo.
É como ter uma espécie de empatia em funcionamento radar: detectados certos pontos de interesse, ela actua. A atenção é agora genuína e a disponibilidade automática. Não é fácil admitir o que não joga a meu favor: não sou muito tolerante. Mantenho distância. Olá, tudo bem? e constato que me esqueci de sorrir. Mas nem sempre me apercebo da minha postura e é por isso que por vezes me choca saber que certas pessoas me acham antipática. E eu a achar que era tão simpática. Não existe orgulho nem arrogância nesta confissão. Não ser empática é um defeito. Sê-lo demasiado também. É desinteressante conseguir ler uma pessoa imediatamente e demasiado bem. Pouco espaço resta para a criação da expectativa, para o advento da surpresa.
A pessoa que não percebe existir em mim doçura iminente jamais se sentirá intrigada pela ambiguidade. As nossas melhores qualidades, como a capacidade para sermos doces, em pessoas pouco empáticas, só se manifestam perante outras que vão demonstrando merecê-lo. A nudez não é um acto. E muito menos se esgota em si mesma. Não acontece, vai acontecendo.
O corpo dela era todo errado.
Uma mulher senta-se no escuro de uma sala de cinema e pensa: não estou morta. O escuro de uma sala de cinema adensa as massas corpóreas, atribui-lhes uma espessura irrefutável. Sento-me no cinema com a minha solidão ao lado. A fatalidade da escuridão é esta: não esconde, antes exibe a solidão, e esta é pegajosa e espessa e dura e está colada à pele. E eu, eu estou sentada em cima da minha solidão, a asfixiá-la no escuro, às escondidas. Mas estou imóvel. No meu corpo só os meus fluidos se movem. Fazem movimentos circulares de mim para fora, saem de mim os meus fluidos. Ninguém quer estar dentro do meu corpo. Eu compreendo isso. Um homem não tem fluidos autónomos, é ele quem os expulsa. São governáveis como todas as coisas dos homens. Uma mulher que tem a libido de um homem é uma mulher perigosa: quando come a carne alheia consome-se a si própria em proporções idênticas. Às vezes uma mulher vem-se e chora. O corpo explode duas vezes. O corpo de uma mulher está sempre pronto a estalar e a rachar de uma vez e uma mulher às vezes vem-se e não aguenta e chora e não percebe porque chora, ela não queria chorar, queria rir e dizer palavrões. Às vezes uma mulher vem-se com tanta intensidade que no fim não fica nada. E então uma mulher está sentada com a sua solidão e os seus fluidos e o seu corpo impraticável e não está morta, mas está sentada no escuro com um corpo que expele como quem expulsa e lembra: estás sentada no escuro com a tua solidão irrespirável e quando saíres vai continuar escuro lá fora.
sedução bestial
Traço uma diagonal que choca com o verde do casaco de um homem. Arrisco uma perpendicular e encontramo-nos, os nossos olhos todos dentro. O livro que prendo entre os dedos é um semáforo que o intriga. Os olhos da besta saltitam entre os meus e os meus pertences. Rendo-me a olhos saltimbancos, não existo senão para ser matéria de ensaio. Gostamos um do outro. Ele saliva pela minha eloquência, quer saber se resiste à filosofia da cama. Eu gosto dele porque ele gosta de mim. A vida é isto, uma balança de desequilíbrios precários. O apeadeiro chegou à porta e o homem sai. Não tenho tempo de lhe lançar a lenga-lenga dos estranhos em viagem e ele nem desconfia do meu absoluto desinteresse em admirar-lhe as costas. Sai um, entra outro. Velho, mirrado, sujo, balões vermelhos nos olhos, unhas preto-fashion. No banco ao lado, um origami. Rio-me. Um origami. Estas bestas. Entretanto, percebo o olhar de outro homem mais atrás, atento, persistente. Devolvo-lhe o olhar. A nossa capacidade de nos entretermos é imperturbável.
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E ele disse: os teus joelhos. Vou fodê-los todos. Com certeza mo disse enquanto dormia, porque me deitei impecável e acordei com o joelho direito torto, ou melhor, sempre direito, quer dizer, não dobra, ou antes, dobra mas dói. Cabrão.
– Gosto dessa parte do teu corpo.
– De qual?
– Daqui até aqui – diz, levando a mão desde o meu ombro até a meio da minha perna.
– Isso é porque ainda não viste os meus joelhos.
– De qual?
– Daqui até aqui – diz, levando a mão desde o meu ombro até a meio da minha perna.
– Isso é porque ainda não viste os meus joelhos.
Link me!
A vida blogosférica é demasiado estratégica para ser levada a sério. É toda uma gestão de relações planeadas a dedo, planeadas a clique. É preciso ir preparando o terreno, as cartas passadas debaixo da mesa enquanto se serve o menu visível aos nossos olhos. Há quem se esqueça de ter bons blogues, por estar mais interessado em fazer outro link estratégico num novo post. Com as repercussões das ligações, chega uma certa, como dizer?, total ilusão de grandeza.
A vida que interessa está numa outra esfera que não a blogo. Mas fora dela somos pequenos, insignificantes. Ninguém sabe o nosso nome (ninguém quer saber) e ninguém nos lambe as botas. Ninguém nos elogia. Ninguém nos convida para sair. Ninguém diz que somos bonitos. Ninguém nos fode.
Ah pá, aqui é que se está bem. Deixa cá ver se o outro já me linkou.
A vida que interessa está numa outra esfera que não a blogo. Mas fora dela somos pequenos, insignificantes. Ninguém sabe o nosso nome (ninguém quer saber) e ninguém nos lambe as botas. Ninguém nos elogia. Ninguém nos convida para sair. Ninguém diz que somos bonitos. Ninguém nos fode.
Ah pá, aqui é que se está bem. Deixa cá ver se o outro já me linkou.
Au Revoir Simone
A força das Au Revoir Simone é também a sua fraqueza. Gostamos da harmonia dos teclados, das vozes suaves niveladas em coro, das melodias pop perfeitas. São 3 cabelos longos-lindos, 3 vestidos curtos, a revestir as pernas 3 collants a terminar em 3 pares de sapatinhos. As Au Revoir Simone são bonecas. O problema das bonecas é serem impecáveis. O problema destas bonecas é a ausência de sujidade. A ausência de perversidade. As meias não exibem buracos, os vestidos não levantam o suficiente para lhes vislumbrarmos as intimidades, os cabelos agem impecavelmente sem agir, prostrando-se sobre os ombros, roçando nas cintas. Nem um cabelo fora do lugar. As músicas acabam tal como começam: sem dor, sem rasganços, sem espetos, sem espinhos, sem atropelos, sem cuspo a crescer nos dentes, sem contorções no peito, sem contorções nos músculos, sem pressões descontroladas no teclado, sem gritos, sem gemidos. Os anjos não têm qualquer interesse. Os anjos são simples. A complexidade chega-lhes com a sujidade. Os anjos querem-se sujos. Querem-se caídos. Querem-se cravando as unhas em tudo o que se lhes cruza durante a queda. Às bonecas, sempre gostámos de lhes cortar o cabelo, sempre gostámos de lhes pintar as sobrancelhas de azul, sempre gostámos de lhes arrancar as pestanas. Está-nos no sangue a corrupção. As bonecas que não se deixam corromper acabam no lixo. Sempre tive apenas uma Barbie – fiquei-lhe com a cabeça, o cabelo navalhado e espesso.
corpos mutantes
Os corpos noturnos encadeiam entre si mensagens a velocidades letais. É preciso prepararmo-nos para derreter/evaporar/vestir o chão/vestir as paredes/destilar/violentar. A corrupção dos corpos é uma ordem.
Shyznogud
Já não pertenço àquele tempo em que se brincava na rua e se empurrava os putos pela ribanceira abaixo. Nasci na cidade, o infantário ficava no segundo andar e o ATL estava à proximidade de uma rua perpendicular. A escola primária ficava pouco mais longe. Mas não havendo pátios em caminho para jogar ao berlinde, nem grandes áreas verdejantes para correr e fazer o pino, o pessoal contentava-se com as paredes domésticas e as das escolas onde era obrigada a passear as fatiotas.
Ora bem. Do que eu gostava era de ser tirana. Gostava do poder e do exercício do mesmo. E, como tirana, eu safava-me bem. Garante a minha mãe, que ao contrário de mim nunca mente, que eu alinhava todas as minhas 20 bonecas no sofá da sala e desatava à bofetada. Trra-ta-ta-ta-ta-ta-ta-tau! Aquilo era distribuir bordoadas irmãmente. E barafustava, tinha verdadeiros motivos para lhes puxar os cabelos e esmagar-lhes as cabeças. Ainda hoje do que eu mais gosto é de descarregar a minha raiva nos outros. Mudei de método, claro. Desatar à tareia era capaz de trazer algumas consequências menos agradáveis para o meu lado. Para exercer a minha tirania, também me disfarçava de professora. Fazia ditados às minhas amigas, que eu sabia que escreviam mal, para ter o prazer de corrigir no fim. Também mandava fazer desenhos, porque eu tinha a mania que eu é que era a artista.
Na escola, tinha três brincadeiras preferidas: matar minhocas, adaptar músicas da moda, reescrevendo-as a começar com “saí de casa, blá blá blá…” (o sonho continua) e fazia o pino na parede. Tentava ir sempre que possível de saia, para mostrar as cuecas. Para pinar mostram-se as cuecas, não é? Bom. Lembro-me de certo dia estar eu e uma amiga nesses preparos, que é como quem diz uma ao lado da outra de pernas para o ar e cuequinha à mostra, e passar uma professora e exclamar “que pouca vergonha!”. Com toda a razão.
Contudo, aquilo que eu mais gostava de fazer era beijar miúdas. Todos os pretextos eram bons. Brincar aos médicos, por exemplo. Se eu fosse a médica, podia salvar a minha amiga do afogamento e tinha direito a exercer a preciosa respiração boca-a-boca. Se eu estivesse em apuros…bem, não preciso de continuar. Eu gostava de estar em apuros. Entrava no consultório e dizia “ó doutora, tenho uma dorzinha aqui…não, aí, não, aqui, aqui…”. Sabidolas. Desde pequena a torcer o pepino. Bom. Eu sorrio comprometedoramente sempre que alguém me pergunta quando dei o meu primeiro beijo. Agora já sabem porquê. Lembro-me que fiquei muito desapontada quando a minha principal companheira das beijocas se armou em adulta ou lá o que era e me disse “não, temos de parar com isto, já não somos crianças”, ao que eu respondi “não, eu acho que é ao contrário! Agora que somos crescidas é que devíamos fazer isto mais vezes!”. Eu é que tinha juízo. Alguém me imagina quietinha no meu lugar, santinha aos olhos de Deus? Não desisti da catequese para ficar de mãos atadas. Oops. A verdade é que fiquei muito deprimida quando, já adulta e em conversa com as minhas colegas, percebi que nem todas as miúdas eram assim. Mummy, there’s something wrong with me!
Resumindo, as minhas ocupações passavam por ser tirana, dar tabefes, mostrar as cuecas e beijar miúdas. Graças a Deus, os putos hoje têm Playstations.
Ora bem. Do que eu gostava era de ser tirana. Gostava do poder e do exercício do mesmo. E, como tirana, eu safava-me bem. Garante a minha mãe, que ao contrário de mim nunca mente, que eu alinhava todas as minhas 20 bonecas no sofá da sala e desatava à bofetada. Trra-ta-ta-ta-ta-ta-ta-tau! Aquilo era distribuir bordoadas irmãmente. E barafustava, tinha verdadeiros motivos para lhes puxar os cabelos e esmagar-lhes as cabeças. Ainda hoje do que eu mais gosto é de descarregar a minha raiva nos outros. Mudei de método, claro. Desatar à tareia era capaz de trazer algumas consequências menos agradáveis para o meu lado. Para exercer a minha tirania, também me disfarçava de professora. Fazia ditados às minhas amigas, que eu sabia que escreviam mal, para ter o prazer de corrigir no fim. Também mandava fazer desenhos, porque eu tinha a mania que eu é que era a artista.
Na escola, tinha três brincadeiras preferidas: matar minhocas, adaptar músicas da moda, reescrevendo-as a começar com “saí de casa, blá blá blá…” (o sonho continua) e fazia o pino na parede. Tentava ir sempre que possível de saia, para mostrar as cuecas. Para pinar mostram-se as cuecas, não é? Bom. Lembro-me de certo dia estar eu e uma amiga nesses preparos, que é como quem diz uma ao lado da outra de pernas para o ar e cuequinha à mostra, e passar uma professora e exclamar “que pouca vergonha!”. Com toda a razão.
Contudo, aquilo que eu mais gostava de fazer era beijar miúdas. Todos os pretextos eram bons. Brincar aos médicos, por exemplo. Se eu fosse a médica, podia salvar a minha amiga do afogamento e tinha direito a exercer a preciosa respiração boca-a-boca. Se eu estivesse em apuros…bem, não preciso de continuar. Eu gostava de estar em apuros. Entrava no consultório e dizia “ó doutora, tenho uma dorzinha aqui…não, aí, não, aqui, aqui…”. Sabidolas. Desde pequena a torcer o pepino. Bom. Eu sorrio comprometedoramente sempre que alguém me pergunta quando dei o meu primeiro beijo. Agora já sabem porquê. Lembro-me que fiquei muito desapontada quando a minha principal companheira das beijocas se armou em adulta ou lá o que era e me disse “não, temos de parar com isto, já não somos crianças”, ao que eu respondi “não, eu acho que é ao contrário! Agora que somos crescidas é que devíamos fazer isto mais vezes!”. Eu é que tinha juízo. Alguém me imagina quietinha no meu lugar, santinha aos olhos de Deus? Não desisti da catequese para ficar de mãos atadas. Oops. A verdade é que fiquei muito deprimida quando, já adulta e em conversa com as minhas colegas, percebi que nem todas as miúdas eram assim. Mummy, there’s something wrong with me!
Resumindo, as minhas ocupações passavam por ser tirana, dar tabefes, mostrar as cuecas e beijar miúdas. Graças a Deus, os putos hoje têm Playstations.
Death to everyone is gonna come
As pessoas aborrecem-me. Junto da minha metade esquerda, exibem-se três espécimes de testosterona em estado vegetativo-animalesco. Competem entre si invocando altas doses da mais refinada treta. Quanta virilidade. Engrossam a voz. Aclaram-na. Ardem por impressionar-me. Entre mim e o espécime do lado, existe um banco vazio. Nele pouso a minha mala e os meus livros, o que leva o espécime da frente a aconchegar os seus pertences para junto de si, como se interferissem com os meus e ele quisesse assegurar o meu absoluto bem-estar. Nitidamente, deseja foder-me. Todos eles. No seu Carnaval de costumes, cada um enverga a fantasia à medida das suas hormonas.
Eu visto saia. Visto meias transparentes e rendilhadas. Vou descruzando a perna sob a tutela de olhos enviesados. O meu livro laranja combina com os meus sapatos e isto para eles é um fashion statement. Eu digo ser um intelectual statement e eles julgam que concedo pinocada desbragada com direito a rompimento selvagem de meias. Eu digo sou eu e os meus cacos e eles distribuem entre si palmadinhas excitadas e risadinhas histéricas: isto promete. O gajo do lado dá o polegar ao da frente para este chupar e vai sussurrando bebé. O bebé masturba-se tempo suficiente para dar cabo do dedo do outro que não dá pelo seu polegar ensanguentado e esburacado porque tem outro gajo a chupá-lo verticalmente abaixo. Olham-me intrigados, procurando a minha aprovação. Com a ponta da caneta faço um furo nas meias a 7 cm da virilha. Guincham que nem macacos domesticados. Furo-lhes os olhos. Agora, fodam-se cegamente, ordenei. Aninhei-me na cadeira, retomei o meu livro. As pessoas aborrecem-me.
Eu visto saia. Visto meias transparentes e rendilhadas. Vou descruzando a perna sob a tutela de olhos enviesados. O meu livro laranja combina com os meus sapatos e isto para eles é um fashion statement. Eu digo ser um intelectual statement e eles julgam que concedo pinocada desbragada com direito a rompimento selvagem de meias. Eu digo sou eu e os meus cacos e eles distribuem entre si palmadinhas excitadas e risadinhas histéricas: isto promete. O gajo do lado dá o polegar ao da frente para este chupar e vai sussurrando bebé. O bebé masturba-se tempo suficiente para dar cabo do dedo do outro que não dá pelo seu polegar ensanguentado e esburacado porque tem outro gajo a chupá-lo verticalmente abaixo. Olham-me intrigados, procurando a minha aprovação. Com a ponta da caneta faço um furo nas meias a 7 cm da virilha. Guincham que nem macacos domesticados. Furo-lhes os olhos. Agora, fodam-se cegamente, ordenei. Aninhei-me na cadeira, retomei o meu livro. As pessoas aborrecem-me.
insónia com Lágrimas e Suspiros
O cérebro é o botão off de um corpo e ela sabe que o descanso derradeiro é iminente como um dedo próximo do interruptor. Eu também o sei porque o meu cérebro só activa a função on. Tento distraí-lo, com narrativas impressas em papel, do coração que teima em electrocutar. Mas do ofício de permanecer desperta a desoras, sempre se impõem as bifurcações: ou o monstro de almofadas enganadoras, onde insistimos no melhor lado para esmagar o coração*, ou a luz morta do candeeiro sobre Lágrimas e Suspiros, onde não escapamos à ironia de ver mencionado, repetidamente, um pêndulo de relógio imóvel.
*ideia reformulada a partir de Carlos de Oliveira
*ideia reformulada a partir de Carlos de Oliveira
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Por aqui, não sei se a brisa me incomoda ou convém. Da distância que me separa do muro que rodeia a casa, há sobretudo flores. Não me emocionam.
Eu não estou capaz de emprestar-me. Sei como parecem reconfortantes os empréstimos à falta de entregas. Quando te deitas, quantas pessoas levas para a cama?
Amar-te é uma ocupação mortífera. Agora que estou morta, escrevo.
As mortes dão frutos.
Eu não estou capaz de emprestar-me. Sei como parecem reconfortantes os empréstimos à falta de entregas. Quando te deitas, quantas pessoas levas para a cama?
Amar-te é uma ocupação mortífera. Agora que estou morta, escrevo.
As mortes dão frutos.
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*EM OBRAS*
empreitada abandonada pela Câmara Municipal da Blogosfera Nortenha.
negociações com vista ao reaproveitamento do espaço.
promessas a Fátima serão cumpridas
consoante resolução satisfatória para as partes envolvidas.
(obrigada a todos pela fé e por eventuais donativos.
a ausência de título, de epígrafe, de links e de bom senso
são da total irresponsabilidade da autora.)
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A diferença entre uma amante e uma ex-namorada amante é uma fatalidade temporal. A primeira representa a possibilidade de um começo, a segunda representa o perpetuar de um fim. A ex-namorada vive o seu papel clandestino com um falso regozijo: aquele amor ainda é seu e já não pode ser seu. E é nesta fatalidade que se inscrevem todos os últimos beijos, os últimos abraços, os últimos assaltos. A diferença entre uma amante e uma ex-namorada amante é o desespero infligido ao beijo.
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Do teu veneno injectado a compasso germina loucura. Tenho um tumor no cérebro que cresce com o teu esperma.
auto-retrato
Menina Limão frequentou escolas, beijou rapazes, aprendeu palavrões, levou tabefes, mentiu quanto pôde e disse a verdade ainda mais vezes. Nunca aprendeu a tocar um instrumento, fez do amor património imaterial, criou um blog quando lhe disseram que não era um génio, apenas para confirmá-lo, e fez do caos livro de cabeceira.
Menina Limão é culta e louca. Tem por hábito morrer a horas marcadas e incendiar-se. Parte os comprimidos ao meio, escreve como quem se despe, sonha ser bailarina e um dia irá ao espaço para se livrar da gravidade. É vítima do consumismo cultural e está sempre falida, procura emprego instável com rendimento estável, gosta de brincar aos médicos e faz todos os anos o pino vestindo saia. É viciada em desgostos de amor e procura despenhar-se sempre.
Menina Limão é culta e louca. Tem por hábito morrer a horas marcadas e incendiar-se. Parte os comprimidos ao meio, escreve como quem se despe, sonha ser bailarina e um dia irá ao espaço para se livrar da gravidade. É vítima do consumismo cultural e está sempre falida, procura emprego instável com rendimento estável, gosta de brincar aos médicos e faz todos os anos o pino vestindo saia. É viciada em desgostos de amor e procura despenhar-se sempre.
i'll come running with a heart on fire
4:29 da manhã sob a luz quente do candeeiro da sala, do outro lado do fio aquele que me dói onde me falta e ainda muito trabalho por digladiar antes do direito ao descanso deste orgão incansável – vou fingi-lo descansável. Tragado todo o veneno necessário para a hora da noite – da garganta ao sangue o alimento dos teus vocábulos pontiagudos. Sou eu e os meus fantasmas em amorosa intimidade entre as paredes de nós imaculadas. Arrasto o meu corpo morto pelos cantos, estatelo-me em frente ao ecrã do computador, preparo-me para perpetuar a escravidão até à loucura branca e eis que soa implacável, feroz e altamente corrosivo Pocketful Of Money, Jens Leckman. Deus sabe como eu morri a cada audição sua, nas deambulações do meu exílio em Barcelona, enquanto esperava secretamente ser arrebatada, arrancada a ferros da saudade crua.
Corromper-te é adorar-te
Os dias não chegam para as horas
Se a cada minuto te esqueço
a cada minuto te abraço.
Se a cada minuto te esqueço
a cada minuto te abraço.
os calcanhares são um lugar inalcançável.
Um dia eles chegam e dizem-nos estamos juntos e o nosso sentimento é de incredulidade. Vamos estabelecendo mentalmente todos os requisitos que exigimos como mínimos àquela que nos sucede e cuja ausência assinalamos. A verdade é que há poucas coisas piores que o sentimento da má sucessão. Mas depois, para quê mentirmo-nos? O sentimento da boa sucessão não existe. Sirva ou não os parâmetros que estabelecemos, o problema está na sucessão ela mesma.
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Morre o Antonioni no mesmo dia que o Bergman. Uma pessoa põe-se a cogitar. Antonioni estava para morrer há 22 anos. Das duas uma: ou o desgosto foi tal que finalmente se permitiu morrer; ou então esteve estes anos todos a pensar “morrer antes daquele cabrão é que não”.
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A morte trouxe-me de volta a escrita. A escrita fica nos intervalos da vida. Se escrevo é porque é urgente. Se urgência existe não é morte. Também não é vida ainda, mas já é alguma coisa.
Coimbra
O final de tarde traz um anoitecer quieto. Pousámos os olhos umas nas outras e dissemos tudo nos intervalos do dobrar dos guardanapos.
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Tenho talento para muito pouco, mas sou perita em perder comboios. Não foi o caso, hoje apanhei-o. Mas deixei o jornal, acabadinho de comprar, no banco da estação. Ainda nem tinha olhado para ele.
Chego ao Porto, pronta para a visita mensal à dentista. Levo um vestido colorido, às bolinhas, predominantemente azul. Acaba a consulta, vejo-me ao espelho. Tenho 4 novos elásticos nos dentes. Azuis. O sentido estético da minha dentista é extraordinário.
Chego ao Porto, pronta para a visita mensal à dentista. Levo um vestido colorido, às bolinhas, predominantemente azul. Acaba a consulta, vejo-me ao espelho. Tenho 4 novos elásticos nos dentes. Azuis. O sentido estético da minha dentista é extraordinário.
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Vantagens de visitar Espanha: podes andar de mini-saia, com um ousado decote, ou fazer piruetas indecentes em plena Praça, que há-de haver sempre uma espanhola mais nua do que tu.
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Ingenuidade a minha achar-me
livre do buraco
negro espesso denso muito escuro
para onde escorregara olhando para o lado.
Buraco fosso cratera massa densa
por aqui os olhos não fecham nunca
as sombras não morrem nem quando a luz apaga.
Irrespirável. Tudo normal.
De punho cerrado a enlouquecer muito.
livre do buraco
negro espesso denso muito escuro
para onde escorregara olhando para o lado.
Buraco fosso cratera massa densa
por aqui os olhos não fecham nunca
as sombras não morrem nem quando a luz apaga.
Irrespirável. Tudo normal.
De punho cerrado a enlouquecer muito.
Só há um sentimento que consegue ser completamente inútil, absolutamente autodestrutivo e particularmente torturante - o ciúme.
Torna animal até a criatura mais autocontrolada e racional.
Depois, ao ciúme podem juntar-se todos os outros sentimentos odiosos, a começar pelo ódio. Odiar todos os que estão imunes ao vírus e que achamos que deviam sofrer um certo flagelo cortante. Como quando tiram partido da posição frágil dos ciumentos para torturá-los mais.
Só existem duas classes de pessoas (oh, a redutora fórmula absolutista): as que sentem ciúmes e as que não sentem ciúmes.
E as primeiras, foda-se, hão-de estar sempre na merda.
Torna animal até a criatura mais autocontrolada e racional.
Depois, ao ciúme podem juntar-se todos os outros sentimentos odiosos, a começar pelo ódio. Odiar todos os que estão imunes ao vírus e que achamos que deviam sofrer um certo flagelo cortante. Como quando tiram partido da posição frágil dos ciumentos para torturá-los mais.
Só existem duas classes de pessoas (oh, a redutora fórmula absolutista): as que sentem ciúmes e as que não sentem ciúmes.
E as primeiras, foda-se, hão-de estar sempre na merda.
Another Day Full Of Dread. Ainda agora continua, em loop, a dizer-me deste torpor que não sei se limpa se obscurece.
A Melody Of Certain Damaged Lemons
Os anos não os conto
Não me venham dizer que sou verde
Cá dentro as mortes são compassadas
Ao ritmo que as velas não cumprem
As únicas velas que se apagam são as primeiras.
Não me venham dizer que sou verde
Cá dentro as mortes são compassadas
Ao ritmo que as velas não cumprem
As únicas velas que se apagam são as primeiras.
Blush
Nesta bússola encarnada e pulsante que trazemos e que por vezes nos roubam, os ponteiros dançam baralhados: nela não cabe o que nos arrasa, antes extravasa e explode. Estilhaços é uma palavra mais do que uma palavra, é um estado onde dormimos em carne viva.
Arcade Fire
Certos nevoeiros musicais, com a sua densidade de coros celestes, estão para nós como os óculos para o Lobo Mau - servem para vermos melhor.
Fuck now Suffer later
– Tens uma boa barriga para tocar bateria.
– Porquê?
– Porque faz bac-bac. Vê-se que já engordaste uns quilinhos.
– Desde quando é que eu tive uma barriga esquelética? Tu nunca viste a minha barriga enquanto eu estive esquelética. E agora insinuas o quê? Que eu continuo esquelética, mas tenho barriga?
Ela levanta-se. Passa a mão na barriga, põe-se em frente ao espelho, tira a camisola e observa-se. A barriga faz uma ligeira curva, parece a barriga de um bebé. Começa a tocar-se, tira o soutien. Aperta os mamilos com força. Está viva, dói. Ele permanece distante, imóvel e observa-a também. Ela aperta os mamilos cada vez mais, fica excitada. Tira as cuecas, continua a tocar-se. Tem pequenos espasmos e de vez em quando olha para ele. Ambos pensam como seria bom voltarem a foder. Tocar bateria com o corpo um do outro. Ela vem-se, tremem-lhe as pernas. Ele não se vem mas pensa como seria bom vir-se dentro dela. Ambos permanecem onde estão. Seria uma insensatez moverem-se um centímetro que fosse.
– Porquê?
– Porque faz bac-bac. Vê-se que já engordaste uns quilinhos.
– Desde quando é que eu tive uma barriga esquelética? Tu nunca viste a minha barriga enquanto eu estive esquelética. E agora insinuas o quê? Que eu continuo esquelética, mas tenho barriga?
Ela levanta-se. Passa a mão na barriga, põe-se em frente ao espelho, tira a camisola e observa-se. A barriga faz uma ligeira curva, parece a barriga de um bebé. Começa a tocar-se, tira o soutien. Aperta os mamilos com força. Está viva, dói. Ele permanece distante, imóvel e observa-a também. Ela aperta os mamilos cada vez mais, fica excitada. Tira as cuecas, continua a tocar-se. Tem pequenos espasmos e de vez em quando olha para ele. Ambos pensam como seria bom voltarem a foder. Tocar bateria com o corpo um do outro. Ela vem-se, tremem-lhe as pernas. Ele não se vem mas pensa como seria bom vir-se dentro dela. Ambos permanecem onde estão. Seria uma insensatez moverem-se um centímetro que fosse.
A Voz Humana
E saber desligar o coração de ti?
Não se aprende a desligá-lo nunca
E dizem-nos que o que nele habita é bom
Mas nunca nos avisam daquilo que o consome
E esta voz
Que podia ser tua
Esta voz
Que é tua
Não esmorece nem quando a ligação cai
E o papel desfaz-se nos dedos
Do torpor que os domina
Como se absorvendo aquelas letras
Conseguissem recuperar ao coração aquela voz.
Não se aprende a desligá-lo nunca
E dizem-nos que o que nele habita é bom
Mas nunca nos avisam daquilo que o consome
E esta voz
Que podia ser tua
Esta voz
Que é tua
Não esmorece nem quando a ligação cai
E o papel desfaz-se nos dedos
Do torpor que os domina
Como se absorvendo aquelas letras
Conseguissem recuperar ao coração aquela voz.