ímpetos homicidas e ressacas emocionais

Saio de casa à procura de ar (não percebo onde se esconde) e visto a minha cara mais triste (a verdade é que estou realmente triste). Algo se desmorona quando o domingo, já por si insuportável, começa às cinco horas da tarde. O tempo que resta para a chegada de um novo dia igual ao anterior custa ainda mais a passar. Ao fim de quinze minutos a caminhar sob a luz branca acinzentada de um Porto adormecido, (a vida esconde-se no interior dos seus órgãos, como um pudor ou como um crime) e depois de ter sido exposta à história mais mirabolante e detalhada, com vista ao chamamento da minha comiseração (desculpa pá, mas tenho uma faca enterrada nos pulmões e os trocos que me chocalham nos bolsos são para pagar a minha última transfusão de cafeína antes de sucumbir à morte que espreita), encontro um café aberto. Merda, uma cara familiar. Se entrar, tenho de fingir que estou interessada em saber como foi a vida em Paris e eu estou absolutamente a borrifar-me para a vida em Paris, aliás eu estou absolutamente a borrifar-me para a vida dos outros. Muito me agradaria que o sentimento fosse recíproco e me deixassem em paz. Portanto, ainda não é desta que me sento a fingir que leio o Pastoral Americana, quando a verdade é que penso na miséria emocional onde me esmigalho e na possibilidade tão tentadora de destruir por completo alguém cuja existência me é insultuosa. Tenho o poder de arruinar uma vida e não o faço. Ter princípios é uma chatice. Uma pessoa tem de se armar em adulta de absoluta rectidão e reprimir os ímpetos homicidas em nome dos valores e do respeito por nós próprios. Entrei na Fnac, claro, como se tivesse outra opção. Está uma velha a tossir imparavelmente, na mesa atrás da minha. Acalmo a minha vontade de lhe curar a tosse a murro. Antes de me sentar à mesa do café, passeio a tristeza entre os livros e os meus olhos imobilizam-se sobre o nome Filipa Leal. O Problema de Ser Norte. Entretanto, apagam as luzes do café da Fnac. Estou a ser expulsa. Já não bastava esforçar-me por não expulsar a doença pelos olhos. Vejo-me então obrigada a arrastá-la entre os recortes dos prédios, à cadência dos empurrões do vento. Vim de tão longe para ler e não li nada. Não é possível ler em casa. Aliás, não é possível fazer nada em casa. O reduto de muitos é o sufoco de outros.