Do melhor que tenho mordido

Poderia ser um filme de vampiros. Não é bem. Poderia sê-lo, que eu não me importava: gosto de vampiros. Do morder para viver. Do morder o mundo.
Let The Right One In, de Thomas Alfredson (Suécia), exibido este ano no IndieLisboa, serve-nos um prato diferente. Há ali uma certa ideia de inocência, tanto quanto há uma certa ideia de perversidade – é na ambiguidade, na diluição destes dois pólos, que reside o fascínio. Já aqui disse algo parecido: a esta ideia tendo a associar a das bonecas às quais arrancamos a cabeça ou cortamos o cabelo. Há também por ali uma reflexão acerca da natureza humana, dissecada através dos corpos e das mentes de duas crianças de 12 anos. Na verdade, apenas o rapaz, de uma beleza clássica, loiro e frágil, tem 12 anos. A rapariga, morena, de feições estranhíssimas, que por vezes lembram as deformações faciais induzidas por Chris Cunningham às suas personagens, tão estranhas quão fascinantes e incrivelmente belas, adensadas num corpo magro mas forte e elástico, a rapariga-vampiro tem 12 anos há demasiados anos. Carrega o fardo de ser uma Peter Pan na Terra da Felicidade Nunca – tem todos os desejos a par dos desencantos de uma alma que envelhece, mas que envelhece dentro de uma jaula de ossos infantis. Tão pequena e tão morta. A vampira ostenta uns olhos esbugalhados de desencanto. Vemos a sede de fantasia de mãos dadas com a sede de sobrevivência e vamos observando esta luta de forças entre a infância e a corrupção da mesma, através de uma identidade votada à imprecisão. Esta história, que se pode abreviar à relação entre uma pessoa e uma criatura, não poderia ser mais humana e isso é o que a torna tão admirável. A cartografia, ei-la completa: a solidão, o amor, a crueldade, a morte, a injustiça, a sobrevivência, as escolhas difíceis, as provas de amizade, as almas perdidas, a vingança, a sede de liberdade, a renúncia por amor, o não sabermos quem somos e o não sabermos que lugar ocupar no mundo e na vida dos outros. Pelo meio, há também uma lindíssima cena de amor, de uma ternura comovente: dois pequenos corpos deitados, dois braços iluminados a espreitar fora da colcha, dois dedos de uma mão em passeio pelo braço alheio.
A relação entre as duas crianças só é possível porque também o débil loiro é um marginal e um marginalizado. Espeta a sua faca de bolso no tronco de uma árvore e grita guincha, porco, guincha!. Ela diz-lhe: Nós somos iguais. Tu gostavas de poder matar pessoas. Eu tenho de matá-las para sobreviver.